quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ele, que veio pra ficar e ir embora sempre. E para sempre.


E mesmo depois de muitos anos eu me lembraria daquela noite de tormenta em que, pela primeira vez, o convidei para jantar e que ele viu-se obrigado a espremer as laranjas. Era o que eu podia fazer se não morreríamos de sede. Ele demorou-se em observar a casa pequena e cheia de pó e eu pude captar o encantador sorriso de cumplicidade que soltou ao verme em trajes que não eram exatamente atraentes. Sentou seu corpo cansado e com aquele humor só seu desatou a contar-me como havia sido as últimas horas desde que nos havíamos separado. E eu, apenas ouvia, como há muitos anos, muitos e muitos instantes que precederam àquele que faziam com que me mantivesse distante de tudo o que escutava. Mas naquele momento e se eu tivesse podido perceber ou aspirar ao sinal de que tudo, realmente tudo estava mudando e que a voz daquele homem que vinha jantar em minha casa pela primeira vez haveria de ser o som, o grito que me acompanharia eternamente até hoje, muitos e muitos anos depois. Porém e acima de tudo minha maior surpresa (ainda que por dentro eu suspeitasse ) foi que aquela voz de viajante atraiu mais alguém além de mim. Aquela voz levou meu Malone a sair do quarto e postar-se justo atrás do viajante, com seus olhos de noite chuvosos, e ali se quedou toda a noite, praticamente sem piscar. Eu nem precisei tirar a atenção da comida que preparava para saber que estava ali. O tal homem contou-nos sobre suas viagens. Mas não precisava falar, eu as podia ver desenhadas em seu corpo. E depois de muito tempo, eu finalmente havia encontrado alguém que eu gostaria que andasse comigo os 40 anos que sempre quis andar. E essa certeza me fez ser melhor.



Entretanto, ele já não deveria pensar em alguém da maneira que pensei nele e nem em tudo que eu já gostaria que acontecesse. Os olhos e a paz daquele homem, que não era grande, mas que já fizera e vivera tanto a mais do que eu, pediam por nada mais do que um bom jantar. Ele precisava descansar. Malone, uma vez, pontuou muito bem a semelhança da alma daquele homem com uma armação de uma janela muito antiga e já maltratada, mas que estivera sempre aberta, presenteando a quem soubesse como admirar, com uma vista espetacular de uma vegetação sempre verde e recém florida. Foi o primeiro homem que Malone amou. Porque aquele homem o podia ver. Aquele homem havia falado com ele. E ele sabia que eu, bem, depois de tantas lutas vãs eu possuía a tranqüilidade de olhar novamente nos olhos de alguém e sorrir.



Já noite alta o meu silêncio o encorajava. Trouxe-me música e diamantes. Guiou minha mão por todos os desenhos e caminhos que havia percorrido. Levou-me para muito longe, onde até a água ele é capaz de dominar e esgueirou a sua em direção ao meu peito. Minha alma estremeceu e desde então pareço doente cada vez que isso não acontece. Sua boca encontrou a minha e nossos corpos embalaram-se num céu adolescente em que apenas descobríamos o tal estranho e inaudível ruído do silêncio, abandonando-nos cada vez mais para dentro de nossa solidão. Pois aquele homem que já havia visto de tudo, certamente, compreendia melhor o amor que eu tinha dentro de mim.


E assim como veio, foi. Voltou para seu caminho, que como sempre em minha vida, não tinha nada a ver com o meu. Acenei e ele me sorriu com a promessa que eu jamais acreditaria de que um dia me levaria com ele.


Essa era uma história que eu não ia contar agora. Mas o cheiro do viajante pousou pela tarde vazia e eu pude avistá-lo, nem longe nem perto, mas eternamente caminhando.


Ah! E quanto a Malone, agora as tardes na janela têm mais uma razão de ser. Calo-me, ele inicia mais uma de suas silenciosas descobertas e vira-se com seus olhos de menino (raro de acontecer) para me perguntar algo.








Inteiramente dedicado ao viajante, o primeiro homem que esvoaçou de nossos pensamentos, meus e de Malone, todo um passado atormentado e que nos ajuda, mesmo de longe a manter o coração novamente em paz. Paz do amor. O texto foi escrito com mescla de tempos verbais, pois, a maior viagem é a do Tempo...