quarta-feira, 29 de abril de 2009

Sono

Malone dormia.
Eu o observava.
O toque do lençol branco em sua face morena inspirava o contraste que o caracterizava.
Havia um silêncio branco que emanava de seu corpo, inerte e entregue ao sono.
Me perguntava em que estaria pensando. Se sonhava.

Olhá-lo assim, livremente, sem o poder de seus olhos abertos sobre mim me fazia bem. Ele me fazia muito bem.

Era um momento em milhões de momentos vazios. Um copo cheio dágua numa zona árida do sertão. Era como estar só. Só e com todo o vácuo que tinha dentro de mim. Um lugar onde uma flor jamais poderia crescer, o lugar onde só ali nasceria uma flor.

Eu havia passado muito tempo naquele lugar. Era hora de regressar. De estar comigo. Foi-se a madrugada e raiou o dia. A luz do meu sol iluminou seus olhos, que como reflexo dos meus, iluminaram o meu lar. Assim estava o dia quando conheci Malone. Assim estava aquela manhã quando o observei a ponta do sorriso que escapava de sua boca quando me sentiu chegar. Depois perguntei se fingia. Não, não é possível fingir para você, ma soeur.

Era indefinível. Seu sono, indefinível. Quando o conheci não dormia. Não descansava. Não existiam as horas para Malone. Ele também achava que as horas eram uma invenção. Uma mentira desmembrada em pequenas partículas chamadas segundos.
Mas pouco a pouco aprendeu a fazer aquilo que lhe era estranho. Aprendeu a viver um pouco. Ainda que nao confessasse isso pra si mesmo.

Aproximei-me. Toquei-o com meu olhar, depois com meu olfato, minha audição. Havia vida naquela respiração. Havia fome, sede. Havia o mundo. O mundo que ele se recusava a conhecer e que eu tentava lhe mostrar. Havia a mim.

Sentei-me e ousei aproximar minha mão.
Ele abriu os olhos.
Fez-se quente...Sertão novamente. Aqueles olhos novamente abertos, fitando-me. O breve sorriso havia desaparecido dando lugar a um sarcástico gesto de reprovação. Pensei por um momento ter visto de relance um olhar menos duro. Menos triste.

Você sabe que não deve. Eu posso não ser real. (Não me lembro quem foi que disse isso)

O que aconteceria se um dia pudéssemos tocar a vida que inventamos para nós? E se ela for real?




Dedico aos momentos que pensamos ser reais e que nos fazem sentir como numa manhã quente de primavera. Dedico a Brecht e Morel.

domingo, 19 de abril de 2009

O Fingidor

Ai
que prazer

Não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
Como tem tempo, não tem pressa…
Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.

Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças…

Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto

É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca…

Jorge Madeira - O personagem dentro do Fingidor.

Fingimos ser muitas Pessoas mas não podemos fingir aquilo que realmente somos. E quando finalmente compreendermos que Ser é algo que foge de nosso controle, então tentamos fingir que vivemos e que somos nós mesmos.

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A uma amiga, uma rosa que te lembrou a mim.

sábado, 18 de abril de 2009

Dia e noite no vão da memória



Ouvira-se os sons celestiais
Do outro lado de dentro
Alguém me abençoou
Orvalho, lágrima da flor,
Batizou os sentidos muito íntimos
Tão sensíveis quanto cor de nuvem,
Em dia de primavera

Sonhos tornaram-se rastros sombrios
Inertes vibrações, minha pele gasta sob areia
Cristalizaram as gotas da Fênix
Beijando-a em sua face angelical
Perenes sombras, ao acaso admiradas
Radar, alarme e céu


Somos pó e estrela

Em pequenos milagres somos libertos.

22/11/2007


Nossa memória é o lugar onde armazenamos aquilo que somos.
Para complementar o Post abaixo, a primeira parte de algo que escrevi numa época em que havia me esquecido do que era. A segunda parte prefiro esquecer que sei muito bem de que lembrarei para sempre onde está.

A memória é algo persistente. Ás vezes quando estamos sentados diante de uma pessoa que nos cita algum momento ou situação de nossas vidas não somos capazes de lembrar. Dependendo do momento não podemos nem sequer pensar...

Foi muito interessante a ultima vez que me passou isso: era uma noite, uma terça-feira qualquer.

Eu estava diante de algo que eu jamais pensei que fosse acontecer. Milhares de sentimentos e sensações mesclaram-se em meu cérebro. Eu já não ouvia o que ele me dizia. O que eu via era que estava muito mais muito longe de mim naquele momento. Estava em algum lugar muito tranqüilo e cheio de rosas. Eu o olhava e minha memória se lembrava de algo que eu nunca havia vivido, lugares onde nunca havia estado e sensações que em algum lugar eu havia perdido... Essas sensações que nascem conosco e que por alguma razão nós tentamos esconder, mas que insistem em permanecer ali naquela pequena zona do córtex cerebral.
Esse vão escuro que é toda nossa vida. Quando alguma coisa é gravada em nossa memória, permanece para sempre.

Por exemplo, Malone dizia que já não era capaz de se lembrar de rosto dela. Estiveram tanto tempo juntos, mas sua face lhe era estranha. Mas a nítida e física sensação de que ela sempre estaria sentada na velha praça onde a vira pela última vez permanecia nele. O momento em que seu vão se iluminava era tão breve que quando se lembrava dela, da sua beleza indescritível e invisível, ele não era capaz de raciocinar e a lembrança se esvanecia, passava como as horas de um dia ensolarado. Mas ele, ironicamente, se lembrava de todas as suas coisas inventadas, como naquele tarde, há muitos anos, quando seu pai lhe ensinava a andar de bicicleta.

Eu também me lembro de minhas coisas inventadas. Eu me lembro ainda de Malone, que até hoje não sei quem foi que o inventou, se fui eu ou ele. Mas com o passar do tempo, eu percebi que havia coisas que eu me lembrava somente se quisesse lembrar. Como aquela determinada rua que passei com alguém que esteve comigo e que provavelmente decidiu esquecer-se de mim. Pois tudo aquilo que esquecemos ou lembramos é diretamente uma escolha nossa.

Se eu pudesse concluir algo sobre esse episódio que ainda vive em minha memória, essa terça-feira insignificante na vida do mundo, eu diria que o que aconteceu foi que minha memória por um momento quis parar e registrar aquilo que via, antes que o tempo pudesse passar e tirá-la de mim. É certo que não poderei esquecer aquele rosto. Ele era o efêmero instante, um caco de vida em meio ao inevitável destino comum de nós, homens.

Quando lhe contei, Malone chorou descontroladamente sem vergonha de que eu o estivesse olhando. Ele estava vivo novamente, só não conseguia admitir-se isso.




Dedico a Juan, alguém que não foi lembrado naquela noite. E dedico o pranto, imenso e sincero, a alguém que insiste em permanecer em minha memória.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Invenções



Quando o encontrei, Malone me disse que oscilava entre a coragem e a covardia. Sabia que jamais poderia deixar-se a si mesmo e essa era sua maior dor. Disse-me que ao contrário de mim, não lhe agradava observar às pessoas.

Contou-me que durante um tempo, certo espaço de tempo que ele não saberia calcular, ela esteve com ele. Porém nem mesmo ela soube entendê-lo. E ela era toda a idéia. A humanização da idéia.
Passou muito tempo só até esquecer-se de que estava só e começou a inventar que via o que via.

Malone falou-me que mesmo sabendo que eu era real, que me olhava, que poderia inclusive me abraçar e que sentia o meu cheiro não poderia afirmar que ele não havia também me inventado. Dizia que a realidade era pura invenção e que ele próprio era uma invenção.

Ele criou-a até o limite de seu amor e ela aceitava suas criações. Era tolerante e seus olhos diziam todas as palavras do mundo.

Em um dado momento parou em um canto da sala. Eu sempre tive que tomar cuidado para não tornar-me surda ao observar-lhe. A música que emanava de suas mãos, que se movimentavam sempre no momento certo, era como a melodia calada que embala a noite tornando-se madrugada. Era como se tivesse um poder sobre mim. Seu olhar perfurou minha alma esgotada pelo desejo mudo e incansável de ouvi-lo. Eu o tocava com o olhar.

Ele imaginou-a mais linda do que jamais seria. Afinal, Malone não conhecia a beleza. A beleza para ele também era uma invenção. Mas isso não importa aqui. Era bela de qualquer maneira, inventada ou não. E eu não poderei dizer mais nada sobre a textura de seu silêncio ao descrevê-la para mim. Pois a intensidade de uma palavra não está em seu significado, mas na pausa que a acompanha antes e depois que a pronunciamos.

Existem determinadas coisas que são. Simplesmente são. Não necessitam adjetivos. Essas são o que podemos chamar reais. Assim pensava Malone ou pelo menos o que eu deduzi que pensava. Ela era.

Ele era. Ele era a minha invenção.
A você, que hoje me fez bem. Obrigada

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Respostas


Tudo o que damos ao tempo o tempo devolve, à tempo.

Não é uma frase que possa ser considerada uma grande novidade. Mas ao desligar o telefone após uma conversa de 90 minutos com uma grande pessoa e uma linda amiga (que ainda não descobriu o significado da palavra grande) foi o que me estimulou para escrever esse terceiro post.

Ha, eu nunca esperava isso. Mas sabia que, em sua primeira reação, ranzinza e irônico me diria que era uma questão de humildemente aceitar a ação impermeável desse nosso imponente companheiro.

E se o Tempo, senhor de si mesmo, impertinente, perene, inevitável parasse 1 hora? Eu respondi:

Eu chegaria àquela porta sem medo nenhum de dizer-lhe, a ele, que lhe dedico amor. Amor que traz consigo um toque de medo, uma aparência de eterno.

Devolver-lhe-ia o que roubei de mim para dar-lhe. Chamaria à sua janela e quando o visse e contemplasse o Oceano em seu sorriso nos encontraríamos num jardim. Ofereceria-lhe rosas. Sangraria minhas mãos ao retirar os espinhos, impedindo que ele se ferisse. Afinal, não se sangra mãos tão livres. Diria-me que também não posso sangrar... Ah! Que importa? Meu mundo e meu sangue já lhe pertencem.

Ele tombaria sua cabeça e choraria em meu peito, umedecendo o lugar que sempre fora seu. Nos recolheríamos a sombra de uma árvore e me diria que a vida é em sua essência boa e que não queria mais sair dali.

Olho em meu relógio do tempo, falta pouco. Tremo. Mas não temo, pois a eternidade estava bem diante de mim, eu podia ver-me refletida em seus olhos escuros.

Parei abruptamente.

Minha resposta, em primeira instância, pareceu-me muito pequena para a grandiosidade dessa pergunta.

Malone ergueu os olhos para mim. Certamente não esperava. Era a primeira vez que nos encontrávamos depois de muito tempo. Ele me confessava coisas, me contava segredos. Disse que pela primeira vez, depois Dela, sentia um nó em seu peito e tinha vontade de se sufocar com o vento.

Essa resposta confirma minha primeira frase. Se para Malone ainda havia tempo, haveria também para mim. Para todos nós.

Seu olhar uma vez mais invadiu minhas veias. Ele era muito forte e não sabia. Passamos a tarde diante do rio mirando nuvens que insistiam em brincar de sombras.

domingo, 5 de abril de 2009

Malone - Parte I




O FIM

Ás vezes a vida nos pede algo. E nós não somos capazes de escutar. Mas a vida não desiste assim, facilmente. Essa parte ela deixa para nós, humanos.
Até o momento em que já não nos pede mais, ela nos obriga a parar.

Assim me disse Malone, no auge da sua ironia. Típica coisa que fazia quando queria esconder aquilo que estava realmente sentindo. Observei-o por um longo período de tempo. Era visível que refletia sobre o que acabara de me dizer.

Existem coisas que acontecem e marcam a vida do ser humano, das quais jamais nos recuperamos, é fato. A primeira frase que ouvi de seus lábios foi que tudo o que fazemos, fica, permanece e ao mesmo tempo mata um pouco de nós.

Falava com ardor quase que infantil. Como aquelas pessoas que não falam muito e quando pronunciam uma palavra é como se a estivessem tocando. Em um determinado momento ele perdeu a concentração e soube que dificilmente sairia daquele lugar. Quem eram seus melhores amigos? Resumiam-se a pessoas que ele havia conseguido apreciar com o tempo e que se permitiram cair no esquecimento. Pois existem coisas que não devem jamais ser magoadas. Malone ergueu seus olhos e pela primeira vez, em anos, observou outro ser humano de perto.

Senti-me como a última nota de uma sinfonia. Seus olhos percorram meu corpo como os braços de um músico que acalenta seu instrumento e, que conforme sente a melodia é capaz de traduzir toda sua emoção e espírito.
Tinha olhos cor de noite chuvosa. Não qualquer chuva, mas aquela, a que molha. Por dentro de sua pupila cintilavam gotas e sua íris refletia a densidade da melancolia recalcada uma vida inteira. Soube que era ali que ficaria muito tempo. Malone estava para todo o sempre.

Ele me ensinou que estar só é estar com tudo o que se pode ter. E que ele mesmo, dentro de sua solidão conheceu a todas as pessoas que fizeram parte de sua curta história.

Não sou capaz de contabilizar o tempo em que estivemos ali, em silêncio. Malone em sua observação do ser humano e eu em minha observação de alguém tão peculiar como ele.



Dedico esse primeiro Post primeiramente a Lorca, inesgotável fonte de inspiração e ao prórpio Malone que nunca quis ter sua história escrita em nenhum lugar que não fosse dentro dele mesmo.

sábado, 4 de abril de 2009

La Oración de las Rosas

(...)!Qué sería la vida sin rosas!
Una senda sin ritmo ni sangre,
un abismo sin noche ni día.
Ellas prestan al alma sus alas,
que sin ellas el alma moría,
sin estrellas, sin fe, sin las claras
ilusiones que el alma quería.(...)

Trecho do poema "La oración de las rosas", título do meu mais novo e primeiro Blogg que é inteiramente uma homenagem a todos os artistas que respeito e que compõem a minha vida.

Uma forma de demonstrar meu respeito por aqueles que são as flores de meu jardim. Em especial à rosa mais bela e fina de todas:

A Tí Federico Lorca, que me hizo comprender el significado de la poesía en mi vida.