quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Crônica de um coração dilacerado

Através das pálpebras via-se uma luz avermelhada por uma pele fina e molhada. Era de tarde, finzinho mesmo, quando o sol decidiu-se por despejar de uma vez todos os raios prometidos para aqueles tempos sombrios.

A vidraça da janela protegia a pele do paciente deitado à cama num espaço que lembrava hospital antigo e modesto. Pela fresta de cortina aberta via-se ao longe dum corredor um homem sentado. Observava.

O homem vestia uma roupa em tom de cinza, queria parecer invisível e creio que assim o era para o mundo. Tinha uma face de quem não estaria ali, se não quisesse. Com os olhos fechados ele recebia o pouco do calor do sol daquela tarde de primavera. Naquela estação do ano lhe vinha uma vontade diferente de sair de casa. Sua mão repousava sobre a beira da cama, as costas inteiramente encostadas na cadeira e uma súplica na alma de que tudo haveria de ficar bem.

Por trás das cortinas da janela por onde adentrei caminhei sem pressa e com uma estranha sensação de alívio por encontrar aquele homem enigmático ali. Certamente seria dele o chamado que ouvia em minha mente há muitos e muitos anos. Em sua pureza apenas queria dizer-me que eu não estava só. Em tom baixo ouvia-se de sua boca uma poderosa oração.

Cheguei bem perto do ser deitado na cama e não tardei em perceber qual o motivo que o prendia ali. Era a dor de Ser: algo que o levava a sofrer mudo em si mesmo por muitas vezes... Era um desatento da morte. Não sabia realmente o que ela significava, ainda que soubesse que existia ele a desafiava quase que permanentemente. E por isso e por nada mais é que amava. E por isso e nada mais que eu o amei a primeira vista.

-O que lhe faltou? Perguntei à sentinela.

Com uma inabalável calma e aceitação disse sem tirar os olhos do paciente:

-Tempo. Não lhe deram tempo.

E sorriu docemente levantando a mão sinalizando para que eu me aproximasse.

- Sente-se vou lhe contar sua história.

Era um borrão vivo e vermelho. Tinha aparência singular quando o retirei do gelo. Na travessia, a mulher teve o cuidado final que não tiveram antes. Ao pousá-lo em meu colo tardei em compreender que cabia reconstituí-lo. Se é que realmente havia tempo para isso.

Primeiro deixei derreter o gelo depois, com a roupa coberta de sangue, tomei-o em minhas mãos. A escala era quase inaudível e para acalentá-lo, chorei. Lágrimas são quentes e salgadas ajudam a estancar. Sem pressa conduzi-o ao meu peito e a cicatriz abriu-se mais uma vez. Pousei-o.

Não saberia descrever aqui a sensação da engrenagem interna que como num milagre Divino recomeçava a funcionar. Havia Música.

Ele chorava. Muito. Não! Muito é pouco: Infinitas vezes. Copiosamente. O que lhe restava era dor. Haviam-no estraçalhado, maculado. Repetida-mente jogaram-no contra a parede, em direção ao solo. Pisotearam aquele que era tão puro.

Após certo tempo conseguiu desprender algumas palavras, então me disse em especial duma vez que acreditou ser feliz e que batia em paz e paralelo a outro igual. A ele doou uma paz gigante, entorpecente. Costumavam sorrir. E comer amêndoas de madrugada.

Porém, um dia que não sabia dizer exatamente ao certo quando nem por que, se abriu uma fissura em seu sorriso. Sangrou. Desatento, não se deu conta. Só percebia tal brilho que via e que via sozinho. Na sua humildade doou também o seu brilho e a conta gotas foi-se embora tudo o que guardava em seu pulsar que um dia, em sua irremediável juventude, acreditou ser uma fonte que jamais secaria.

Até que de tanto bater passou a ser açoitado. Eram golpes alheios que o alimentavam e não mais a sua meninice. E não tinha nenhuma cama feita nem mesmo médicos que o pudessem cuidar. E foi atirado para longe como um desses produtos que perdem a validade...

Arruinado com pernas e braços quebrados avistou um edifício muito alto. Gritou ainda algumas vezes em busca daquela ajuda que tanto pedia na simplicidade de um gesto de amor:

Não vieste. Talvez nunca viesses. Como nunca vinhas. Mal gastaste o milagre, o presente. Ainda que eu sempre acreditasse que o amor fosse isso.

Em seus últimos momentos reparou numa rosa. Morta. Com sua delicadeza ferida colheu-a, contou-lhe uma história a fim de reavivá-la, fez o que deveriam ter feito com ele uma vez que o fizeram crer que era importante. Mas, em segundos ela desfez-se e o espinho lhe picou uma última vez. Ele não podia fazer mais nada por ela. Dedicou-lhe a última oração. E voou...

Uma rua.

Uma mulher nua.

Achou minha forma bela.

Entregou-me a ti.

Quando o sol despediu-se em forma de sonhos naquele fim de tarde o silêncio que transferiu para o começo da noite me despertou. Já estava céu escuro. Sentei-me em mim mesma e passei pela memória a curta história do coração assassinado. Mas não estava mais sozinha.

- Onde está agora?

-Repousando junto a minhas flores. Vim apenas para ver como andas sem ele.

Um meio sorriso foi o que consegui dar-lhe em agradecimento. Senti-me um pouco mais aliviada, pois agora ele repousa convalescente e redescobre a validade. E, para mim, só há um único ser que aceita a morte com tanta sabedoria, por isso é capaz de resgatar o espinho sem flor e durante sua vigília elaborar o embrião duma próxima rosa.

Sem pressa Malone cuida para que não lhe falte nada mais.

Inteiramente dedicado de corpo, alma e coração (mesmo dilacerado) para algo que amei e amo e que um dia entenderá que o maior da Vida é ela própria e por isso mesmo é que lhe devolvo o presente que um dia me deu para que em seu tempo descubra o valor dele.

Ao Coração que sob os cuidados de Malone, silencia e dorme em paz.

Por hora.

E Ludwig von, pelo seu dia.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

falo pela boca dum homem que maltratou seu próprio corpo
e sua alma.

quero que o total de mim, ou o que sobrou venha e inunde.

venha, venha.

pois meu medo se foi.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

o amor pra mim já virou amizade, raiva, dor (e demorou para passar), vento e até mar.

mas agora, ele virou silêncio.
pois quando se ama um homem
o mundo se resume a um amanhecer
sem volta

e caibo ali, confortável
(sempre dolorosa)
repousando na cama de teu plexo aberto
e elegante

Quisera também que eu
nunca mais acordasse
se me permitisses o son(h)o
nessa tua saboneteira
infinita.

Desafio

-Quem é esse homem que decide-se pela noite?
Noite da alma, marcada, ruína.
Rosto jovem de alguém que talvez nunca aprenderá a amar...
E eu que pensava ter derramado lágrimas o bastante.

Malone me perguntava como que proféticamente, por quanto tempo mais eu ficaria ali?

-A vida Sempre acaba por nos chamar, soeur e há sempre alguém que insiste em não atendê-la.
Como eu.

-Por quê? Explica-me duma vez!

- Em palavras dela há uma única primavera em cada vida e é preciso aproveitá-la ainda que exista um inverno que a acompanhe. E há quem goste de sentir frio.
Eu me fechei aqui pois foi o que pude fazer, havia outras opções, mas eu escolhi perder. E ao que me parece, esse teu tal Homem de Amêndoas está vindo até mim, a viver como eu.

E como tu, que também fizeste a tua escolha, soeur.

Só não sei se vou querer aceitar também a ele.


terça-feira, 15 de novembro de 2011

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.

Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça

domingo, 6 de novembro de 2011

"Todas as coisas às quais me dou tornam-se ricas e me consomem" R. M. Rilke

domingo, 16 de outubro de 2011

chuva velha

São Paulo, +-10h.

Havia certa rotina naqueles dias embaçados de estação. Então, ele me fez uma visita.

Ele me olhava e me via/ria sinceramente. Sempre nos entendemos... Pela primeira vez chegou a dividir a cama estreita comigo.

-Chove e eu gosto de te ver nesses dias.

Com a face nunca antes tão próxima ele me descansava com silenciosa ternura que senti meu coração finalmente afrouxar-se um pouco. Ele tinha o poder de me calar sem fazer o menor esforço. Sempre admirei aqueles que nos fazem calar com pouco. É necessário ser humildemente perspicaz para tanto, quem grita não cala ninguém.

Foi assim que ele me ensinou a viver desde o primeiro instante, do primeiro sonho: como respirar dentro d’água e ainda conseguir captar o aroma de uma possível flor subaquática rara que pudesse aparecer pelo caminho.

Naquela tarde chuvosa ele adentrou meu mundo de novo assim como quem simplesmente sabe o momento de fazê-lo e com aquela calma de sempre. Quando o mormaço já chegava ao ápice, algumas primeiras gotas grossas lubrificavam o solo de concreto, chuva jovem ainda, ele despiu-se sem nenhum pudor, como se fizesse isso todos os dias e deitou-se ao meu lado com cara de quem queria contar ou ouvir alguma história. Eu bem sabia sobre o que gostaria de falar. Na cama precisei diminuir um pouco a minha angústia para que coubéssemos todos ali. As palavras, as lembranças, eu, ele e a nossa solidão compartilhada.

-Tinha aroma de fruta e era claro como uma manhã ensolarada de inverno. Eu tinha (ou queria que tivesse) encontrado um igual, tão igual como você... Viajei sem medo por entre aquela estrada verde. Era a mais bela estrada do mundo. Queria sentar-me e contemplar aquela terra imensa e fértil, inalar e inalar o aroma de sentimento amendoado e verdadeiro e provar seu gosto. Afinal, podemos e devemos viver isso também. Deve haver o espaço para essas frutas raras que encontramos pelo caminho.

Ele percebeu que a dificuldade de falar aumentava. Respeitou, e num daqueles momentos suspensos no ar me levou embora para sempre e de novo. Era inevitável, seria minha companhia mais fiel. O mundo era um pouco melhor com ele ao meu lado. Comigo ao seu lado.

Os olhos da tarde escureceram trazendo a noite. Reparei de repente que os de Malone se camuflavam conforme o tempo e não importa o que acontecesse havia sempre um céu chuvoso por dentro deles, uma chuva agora envelhecida que há muito tempo despenca...

Quando me dei conta ele se fora e eu estava novamente só. Só com Malone, minha plenitude. E eu teria de (re) aprender a viver com isso também.

domingo, 2 de outubro de 2011

Malone está feliz agora. Pois eu estou de volta.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

o que veio pra ser bonito

há um qualquer coisa de gasto, de vasto
é basto, o teu cabelo
que sinto o cheiro de longe
quando te vejo chegar, passos lentos e largos
(mais até do que as pernas podem aguentar)

e te demoras
pois estais sempre exausto
tanto que nem no sono podes esconder-te

perdoa, perdoa esse meu
faminto olhar
que te acompanha, de (a) braço
mas acontece,
que eu te amo,
eu amo,
esse teu sincero
cansaço.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Era fim de tarde. A cama pequena e única ocupava aquele novo espaço. O ar levemente contaminado por um rastro de fumaça e não havia meio de parar aquela chuva porque, claro, eu só poderia ter me dirigido até ali por conta dela. Aquele tempo me recordava seus olhos e aquele lugar cheirava a solidão.

Eu podia perceber pela distribuição dos objetos e o lençol amarrotado o abandono total de uma vaidade sempre incompleta e que Malone ainda não havia se acostumado com aquele seu lugar. Se é que realmente poderia chamá-lo assim.

Sentei-me na cama ( como de costume ) ao lado da janela. Era como se estivesse sempre a ponto de partir. Uma provocação a si mesmo, a um homem que esconde-se do mundo mas que não adormece sem estar próximo do limite entre si e a realidade distante.

Ali, repousava o tempo. Aquele perdido e também o porvir. Tive saudades de algo que não soube descrever por não ter aprendido a perdoar e recordei determinada conversa com meu irmão:
dizia sentir-se vivendo uma vida ultrapassada e já não sabia até que ponto saber disso o ajudava. Assistia-se em segunda pessoa e dava gritos de angústia por sentir-se tão impotente. Afinal um dia ele havia descoberto uma flor.

- O que é o homem não antes um fracassado e incapaz de ser feliz com o que possui? Eu a inventei, a poli, cheguei mesmo a conseguir conviver com ela durante algum tempo. Mas eu não soube respeitá-la, soeur. E nos perdemos.

A medida que lembrava sua tristeza seus olhos camuflavam-se na chuva e eu podia viajar por entre aquelas que cors que por tantos anos me auxiliaram a perceber também aquilo que eu mesma não compreendia. Malone sempre fora uma espécie de guia para mim. Nos acreditávamos como se fossemos a última coisa em quem acreditar. Sim coisa. Sim quem.

De pronto desviei meu olhar para a porta do quarto e como a última e mais bela nota duma sinfonia mal pude crer que ele estava ali. Sempre presente quando mais preciso dele. Com a cabeça recostada no batente, braços cruzados e o velho ar de reprovação e zombaria (que na verdade mascarava o grande amor que lhe sobrava pelo mundo), estava feliz de me ver novamente. Dei-lhe então um sorriso que só a ele cabe merecer.

-Eis nosso espaço comum, soeur. Onde a vida não nos toca mais e o silêncio preenche o que do vazio nos sobrou.

Caminhou até mim como se fosse o último homem a caminhar na Terra. Ele podia e eu sempre deixei que o fizesse. Afinal, detinha o poder e o saber para ir até onde quisesse e por isso mesmo já não haveria de ir a lugar algum.

10/06/2011 Sexta. 19:15h


Ao homem de amêndoas que pouco conhece Malone e a quem por isso ele lhe detém tanto amor... a Malone, sempre e sempre.
A noite chuvosa povoou seu olhar seco por uma vida em forma de pingos.
Queria acordar na manhã seguinte junto com um sol mais quente, como o calor entre duas mãos dadas; sentir a areia mais grossa sob seus pés para lhe ser um pouco mais fácil caminhar pela estrada que a cada dia se fazia mais longa.

Parada, desejava uma noite Cheia de Luas.


20/08/2011

segunda-feira, 25 de julho de 2011

me de a mão...

Era de manhãzinha. O sol ainda envergonhado de nascer enrubescia a face do céu. A estrada de terra se confundia no horizonte. O destino: oceano.

Aquele dia havia sido feito para ser belo, pensava enquanto o ruído do pneu embalava as suas primeiras horas. O vento matutino acarinhava sua pele e ninguém poderia lhe machucar. A velocidade do veículo era compatível com sua enorme satisfação ao vê-la ajoelhada no banco do passageiro finalmente cantando sem medo.

Eles viajaram durante toda a madrugada. A decisão tomada mutuamente, sem que precisassem pensar muito. Colocaram suas roupas mais coloridas e foram. Riam como se não existisse mais tempo para chorar. No banco traseiro o desnecessário para mais uma aventura. Era simples viver.a

Ambos se observavam livremente. O cheiro do eterno estava presente em seus corpos. Ele, acima de tudo, poderia voar naquele dia. Seu rosto iluminava-se pela condução de sua própria vida. Via-se a si mesmo no banco da frente, com uma grande estrada ainda a seguir. E era ao seu lado que queria viver.

Ela, poder-se-ia dizer, era tão bela quanto a luz do grande astro, agora já deixando a timidez pra lá e invadindo o céu douradamente. Ela nunca desistiu e seu dia chegou. Hipnotizava-se com o cheiro do eterno cada vez mais perto. Sorria, sorria e sorria. E o amava como exatamente da primeira vez.

Foi quando avistou não muito longe dali um pequeno casebre. Teve uma ponta de curiosidade por olhá-lo mais de perto: por um momento pensou que veria aquele rosto inventado por ela tantas vezes. Conforme o veículo aproximava-se se deu conta de que estava vazio. Ela soube então que o tempo de todas as maneiras havia finalmente se voltado a seu favor.

E o carro seguiu seu caminho. Oceano ali pertinho.

Malone terminou seu relato com lágrimas nos olhos. E me disse que nunca lhe fora tão difícil ser invisível como naquela manhã. Mas ele também precisava ser real de vez em quando, ele também queria me ser real.



Dedicado sempre, eternamente a Malone, aos dias de Oceano e aos presentes que a vida nos dá.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

gostava do tempo em que o amor bastava.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

até mesmo quando o nada acontece, Malone existe... e isso me faz refletir se ele é real.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

E de repente nos damos conta de que o tempo passou quando certas árvores da infância são cortadas, quando casas antigas são completamente abandonadas e seus velhos habitantes vivem apenas com seus simples objetos uma vida calma e você esbarra nisso tudo com seus problemas como num grande paradoxo. E sente-se mais aliviado.

Então eu caminhei por aquele quintal e nos galhos pesados da velha jabuticabeira me sentei e era como se chorasse e sorrisse.

Dessa forma eu agradeci novamente ao tempo, ainda não seco, pela sobrevivência batalhada diariamente, a solidão superada a cada suspiro e pelo sol daquela tarde inesquecível de mais um Abril...

...Sépia, como a cor dos olhos de uma velha senhora.

A alguém que já andou muito.

17-04-2011

domingo, 20 de março de 2011

Babel

A figura encontrava-se semi-inclinada para frente.

Pingos de suor contornavam sua face avermelhada pelo calor do verão enquanto despencavam sonoros até o solo devido a uma respiração ofegante. Trazia consigo um cansaço descomunal e seus joelhos vacilavam ao toque das mãos encobertas de sangue.

Aquele lugar era novo: diante e atrás de si, Malone podia avistar duas infinitas escadarias de mármore branco. Se me perguntarem eu jamais saberia como ele havia chegado até ali e tão pouco qual seriam seus próximos passos. Apenas posso afirmar que se encontrava num ponto de intersecção entre dois longos caminhos que o levavam sabe-se lá para onde. Fazia um esforço sobre-humano para manter-se em pé e de sua boca sibilava quase que muda uma oração.

Então, aconteceu: da pele gélida de mármore daquele solo surgiu tímida e sorridente uma rosa cinza-azulada. Malone a princípio apenas a observou estático. Reparou-lhe o brilho anil de suas pétalas aveludadas e como sempre, maravilhou-se num instante único...

Porém, esse momento definiu-se como distinto de todas as vezes que olhava um ser vivo como aquele, pois sua coloração recordava-lhe algo oculto, saudoso e inevitavelmente, com uma ponta de tristeza.

Malone recordou um momento de pura inocência e confidência: deveria ter pouca idade e apenas aprendia a caminhar. Essa lembrança inventada por ele de uma infância quase feliz o mantinha em pé em meio àquele mausoléu ao ar livre, àquela encruzilhada de pedra onde nem ele mesmo se lembrava como havia chegado.

Corria sozinho por uma alameda de terra. (Corria de algo ou por algo?). Apenas corria e o vento vestia sua pele e seus cabelos puros.

A princípio suas pernas o ajudavam a reconhecer o caminho e gozavam do movimento e do impacto com o solo fundindo-se num corpo só. Conforme corria podia apreciar a paisagem e seu corpo, ainda que pequeno e frágil, o fazia maior que tudo. Havia amor.

Num dado momento, Malone passou a correr um pouco mais rápido e numa linha muito tênue da qual não se deu conta, suas pernas tomaram uma espécie de vida própria e sua visão embaralhou-se. Ele tentava reconectar o resto de seu corpo com seus membros inferiores, mas foi inútil... Seu cérebro esforçava-se para manter o equilíbrio e seu coração parecia não agüentar o próximo passo.

Não se sabe por quanto mais tempo e nem qual a velocidade foi atingida, mas ele seguiu correndo e quando se deu conta sua vida havia passado e ele já não se parecia nem um pouco com a criança da beira da estrada...

Malone volteou então sua cabeça do chão para o lugar onde havia brotado a flor azul e sentiu algo macio em seus pés: aquela flor que apesar de nascida do solo infértil e duvidoso engravidou o mármore mais outra e outra vez transformando-lhe o branco num jardim turquesa que o cobria até os joelhos.

Malone então se entregou ao irresistível sabor agridoce do aroma de anis daquelas suas velhas companheiras, abandonando seu corpo em meio ao jardim e ali permitiu que elas o afagassem e lhe dessem abrigo acarinhando seu corpo dilacerado.

Ficou ali por muito tempo.

Sonhou novamente com a lembrança.

... E quando se levantou já sabia qual dos dois caminhos iria trilhar.

02/02 – 16/02/2011

A Malone que me espera sem pressa dedico a história, a memória e minhas eternas desculpas.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

hoje cedo

em seus olhos desenhou uma possibilidade
era apenas o que seus extremos o permitiam aspirar
assim ia,
tentando se salvar
do abismo lento
que outrora
deciciu-se por desejar.

e com meio sorriso
irônico
pausou seus olhos rubros e insones
abriu uma fresta da janela
foi pelos primeiros rasgos da manhã
a encontrar algo,
não sabia o quê,
mas havia algo.



"Quem cai, diz: 'Me levante'."
A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

e então aconteceu:

ele viu a flor e escureceu
sua visão, seu coração


era a primeira vez que
se sentia triste ao
olhar uma flor

existem certas coisas que não podem ser nunca magoadas.