quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ensaio da chuva

Permita-me dizer que estou diante de um espelho e tenho fios de cabelo queimados em minha cabeça pois ando fingindo o que sou.

Tenho o que preciso aqui em minha morada.
Do lado de fora só me interessam os murmúrios quase imperceptíveis da madrugada que, de alguma forma, me recordam tuas desafinadas canções.

Esse corpo que agora observo.
Meu corpo passeia entre o belo, o imperfeito e claro, o frágil.
Permita-me dizer também que estou nu, vestido apenas com as mentiras que vivo a me contar.

Decido me tocar.
Ao longe escuto pequenos sinais de raios.
Em algum lugar você estará acordado?

Começo pelo peito: há certa dificuldade ao respirar, como se algo me impedisse de inalar o aroma das flores.
Ou serei eu quem decidiu por não mais aproveitá-los?

Deslizo minhas mãos para o pescoço.
Dentro dele há palavras presas, gritos sufoca - dos que jamais dei ou darei.
Sinto um impulso violento de dilacerá-lo com as mãos e liberá-los enfim...
E se não fosse o ruído sobressalente da janela que, atrás de mim, escancara-se com o vento.

A primeira lágrima tímida do céu noturno pousa em minhas costas.
L a r g a s
Me parecem a velha pradaria gigante por onde alguma vez descansei meu coração.
Tinha cor de terra arada, algo que me remete a lugares que nunca visitei e tão pouco farei.
Há um peso inexplicável sobre meus ombros.

Reparo que os pelos em meus braços levantam-se quando passeio sobre eles meus dedos algo úmidos.
Tenho mãos perfeitas.

Noto que o espaço entre costelas mede dois centímetros, máximo. Estou cada vez mais certo de que essa noite vai chover. As luzes de fora refletem coloridas em meu espelho e a brisa morna invade o quarto, causando em mim um leve estremecimento. Prendo a respiração e assim posso enxergar bem meus músculos do abdome. Sou magro, bem dizias. Demoro-me certo tempo em realizar que é em meu ventre que estão abrigados meus principais órgãos e tudo aquilo que poderia beber e comer também estariam ali. E isso me faz pensar que estou vazio.

Um raio ilumina o quarto. Estou mirando minha imagem que, ( assim como eu suspeitava ) como num passe de mágica parece se metamorfosear do lado de dentro do espelho quando, pela primeira vez, toco meu sexo.

E lá está ela, sempre pálida. Sua face me chama pelo nome ainda que ao contemplá-la me torna surdo. Tem os cabelos negros na altura dos ombros e uns olhos de quem nunca descansa. Como de costume apenas posso tocá-la com o olhar. Então minha retina perambula por entre seus ombros um pouco inclinados para frente, depois seu peito que parece prender um coração que bate lentamente. Seus seios pedem minha ajuda e seu ventre me devolve a certeza de que há também pureza num corpo que ainda não se livrou do mundo. E segue encantador e cansado.

Torno a realidade com um movimento seu. Ela pousa as mãos ao redor do quadril. Conseguirá andar? Seu corpo não possui tantas curvas e plaina sereno, traduzindo uma língua só falada por ele. Estou imerso em minha viagem sem volta.

O ar da noite está cada vez mais quente, as nuvens resistem assim como eu: a água quer ultrapassá-las com tanta vontade quanto a minha de adentrar no espelho diante de mim. E no momento exato em que me dou conta de que jamais poderia decorar aquele mapa de ternura, decido pedir socorro e vou ao encontro de seu olhar.

Meus olhos estão subindo, subindo...
o que me espera, soeur?
Sua boca existe como existem as rosas e tu,
as únicas coisas nas quais posso crer.
Sei que ela existe.

É tarde, a chuva agora já não parece mais ensaiar, ela suicida-se desde o céu alto...

Meu olhar em resistência, corre numa velocidade antes jamais vista, há tanta coisa ainda para olhar. Aquele corpo é maior que o mundo.

Falta pouco, já é tarde, já é tarde me anuncia a pesada gota que sinto cair em minha nuca...

Suspendeu-se o ar

Pescoço, nariz, maçãs, cílios e



Diante de mim eu e um espelho. Uma lágrima.

Permita-me dizer que pela janela ainda percebo, no mesmo lugar, o ensaio da chuva.




A Ludwig von, por seu dia.
E ela, que resistiu até o último momento em encarar Malone de frente.
16/11 a 16/12/2010 às 20: 35

terça-feira, 30 de novembro de 2010

"Devo fingir as armas e a pira
Da epopéia e os pesados mares
Que corroem da terra os vãos pilares.
Devo fingir que há outros. É mentira.
Só tu existes. Minha desventura,
Minha ventura, inesgotável, pura."

J.L. Borges

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

"Maria Maré"

Já quase pegava no sono quando ele apareceu.
Surgiu com um sorriso que jamais havia visto.

Entregou-me uma flor diferente, nova, colorida

Abocanhou um pedacinho da minha alegria
E saiu pela janela
Acarinhando a noite, sua súplica

Como o Mel derramado pelo homem
adocicando o corpo indefeso e amante
da mulher que foge sempre
de seus próprios sonhos

Não posso parar de sorrir
Pois sei que hoje
em qualquer lugar mudo
Malone está feliz

"(...)Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender
Corre, Maria
Que a vida não espera
É uma primavera
Não podes perder (...)"


Ao quarteto: Tom, Vinícius, Chico e Milton

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Noite - Viétcher
(publicado em 1912)

Ele gostava de três coisas neste mundo:
o coro das vésperas, pavões brancos
e mapas da América já bem gastos.
Não gostava de crianças chorando,
nem de chá com geléia de framboesa
e nem de mulheres histéricas
...e eu era a mulher dele.


Anna Akhmátova, sempre, sempre obrigada!

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Sobre ser (ainda) sempre aqui

Ele me prepara um café quente. É de manhã. Frio. A figura parada de costas para mim veste um casaco cinza que me confunde. Há um pequeno inseto pousado bem no meio de suas costas. A porta está aberta:

-Você deveria ir.
-Eu ficarei aqui.
- Havia o mundo e eu fiz minha escolha
- Ainda há o mundo e eu sempre quero ouvir tuas palavras.
- Suas pálpebras se moveram durante toda a noite. Há muitos anos que não sonho.

Aproximei-me e observei-lhe as mãos. Dedos um pouco maiores que os meus, nem finos nem grossos, bem desenhados. Mãos de pianista...

- As xícaras estão dentro do armário. Azul pra você e a branca para mim.
Sentei-me diante dele, a mesa é circular. O gosto do café permaneceu por várias horas em minha boca.

Ele levantou-se abruptamente, como se recordasse algo que há muito havia esquecido. Ele caminha até um armário antigo, manchado de verde escuro. Retira uma aquarela que, se não fosse pelas manchas recentes de tinta eu diria que jamais estivera ali.

Fechou as cortinas, conduziu-me até a sala, acomodou-se na cadeira mais próxima e com aqueles olhos de chuva sutilmente ordenou-me:

- Tire a roupa. Vou desenhar em seu corpo a história que tanto quer ouvir.

Fitei-o por um longo instante. Cada peça era uma parte de mim que ia deixando para trás. Ele manteve o olhar em mim e, mesmo sem o ver, era como se já fosse um velho conhecido de meu corpo. Eu não tive vergonha, pois sabia que isso aconteceria de qualquer maneira.

Acomodei-me.

E com um olhar que regeu o vento fresco até nós, meu irmão anunciou a chegada cinza e madrugada da estação mais bela...

Malone ligou uma luz e em minha pele começou a misturar as cores.






A Manoel, Manoel, Manoel, Manoel e a Manoel. Ternura!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A Mulher Perene


Desde a poltrona estagnada no centro do apartamento Malone observava a janela defronte, ruído d’água caindo do chuveiro.


Malone agarrava-se a tudo aquilo como um servo que adora seu amo apesar de escravizado e permanece ao seu lado imóvel como uma vegetação típica de lugares ermos, consumida pelo sol.Ele já não poderia ou já nem queria mais sair dali e se tornava cada dia mais só como a lágrima que, sob a luz de um dia nublado, escorre discreta e sozinha na face de um alguém que anseia por respostas a perguntas sequer formuladas.


Havia uma janela: ás vezes ele gostava dela. Era grande o suficiente para que Malone se recostasse em sua poltrona engastada. Através da janela ele avistava uma mulher: ela tinha seios fartos e os acarinhava enquanto se lavava. A água despedia-se de seu corpo como o arco se despede do violoncelo, metamorfoseando seus pensamentos em música que Malone podia escutar desde longe.


Quem poderia ser? E se em algum momento, Malone pudesse receber seu olhar? Daquela fêmea de pele morena... Malone reparou então que lavava um ferimento, uma cicatriz relembrada todos os dias. Imaginou que aquela fora uma fissura causada pelos arcos daquele violoncelo cortante que embalava o corpo dançante de uma mulher que não possuía muito mais vaidade a não ser a de contornar seus seios fartos. Inconscientemente ela também deveria ver Malone.
Ele levantou-se e atravessou a janela em direção a ela. Mais de perto observou lentamente que seu corpo era inteiramente humano. Malone viu, agonizante e fraca, bem ao centro de suas costas largas uma chama dourada...


A mulher conduziu a mão de Malone por entre suas curvas. Em determinados pontos ele podia notar uma expressão de dor e estranhamente ele também se sentia incomodado, como se aquelas máculas também o afetassem. As notas daquela sinfonia eram densas, marcadas, profundas e acima de tudo encantadoramente tristes... Mas a mulher sorria, calma e timidamente por receber Malone. Aroma de terra vermelha como a cor dos lábios pequenos e breves, os mesmos que no instante seguinte esconderam-se em seu ouvido e, na ponta dos pés ela segredou-lhe uma oração... Malone percebeu que ela fazia certo esforço para equilibrar-se: sorriu (como há muito) e deu-se conta de que poderia abraçá-la desde qualquer altura...


Ele a amparou, a mulher morena, de seios fartos bela e dourada e deixou-se cair em seus braços como as pétalas que abraçam o pólen para sobreviver...


Com a face descansada sobre seu peito, Malone recostou o ouvido na cicatriz entre os seios. Ali, de súbito, ouviu a melodia abstrata: teve esperança, teve verdes lembranças...A mulher apertou-o contra seus seios e pela primeira vez em muitos anos perdidos (sim, ainda perdidos) Malone sentiu-se em casa e cara a cara com aquela mulher de seios maculados ele buscou seu olhar. Ela lhe retribuiu e dentro de seus olhos havia veleiros grandes que levavam Malone para todos os cantos do mundo.


A mulher então ergueu Malone e antes que ele pudesse sequer tocar-lhe os seios ela pediu-lhe que lhe ajudasse a cuidar de sua cicatriz. Malone encostou seu indicador na marca profunda, abriu-se então uma pequena passagem de onde vazava uma luz dourada e os violoncelos atingiram o máximo de volume. A música parecia curar a mulher...O ambiente então iluminou-se, Malone depositou um pouco mais a mão, pode sentir o calor interno daquele corpo. Sentiu algo como um abandono compartilhado ao observar a face plena da mulher.


E num passo, olhou-o diretamente, a mulher adentrou Malone como ninguém jamais o havia feito.


Suspendeu-se o tempo, o som do violoncelo ecoava mudo, a luz dourada cegou-o e ele só teve tempo de decorar aqueles seios fartos uma última vez antes de acordar.


Desde a poltrona estagnada no centro do apartamento Malone observava a janela defronte, ruído d’água caindo do chuveiro. Mas ela já não estava mais lá. Seu corpo estava pleno, sensações que ele já não se lembrava mais, foi quando percebeu que, em sua mão ( a mesma que invadiu o peito da mulher ) restava com pétalas fortes e vermelhas, a misteriosa prova de que um dia ainda se reencontrariam:


Malone e a Mulher Perene.




A Marçal ( de Lavínia e Cauby) , Bruce e sobretudo Villa-Lobos, companheiros de tarde.

E o melhor foi que choveu....

Não vá, disse-me Malone observando as nuvens escuras que se formavam no céu naquele início de tarde.

Naquele dia eu acordei muito cedo e me preparei para rever tudo aquilo que havia sido o mundo. O meu primeiro mundo, que mais parecia a Lua, era muito branco e tinha pernas longas.

Escolhi o que tinha de mais simples para vestir e não pintei a cara. E apesar do alerta de Malone eu abri a porta da Torre de Marfim e abandonei-o ignorando seu costumeiro olhar de reprovação. Que dessa vez vinha acompanhado de certo e inédito toque de medo. Você sabe que vai chover. Por favor, chega de se molhar, soeur.

Cheguei lá a avistei de longe o anel com sua pedra. Brilhava mais do que o sol. O mundo usava-o em suas mãos que hoje já não me tocam mais. Aquele anel que eu lhe dei caminha por entre os dedos do mundo e o levam cada vez mais para longe de mim. Agora, as mãos do mundo tocam instrumentos de corda e de música que animam e maravilham a toda gente simples que o habita.

O meu mundo cresceu.

E, de repente, eu fui feliz. Feliz de ver o mundo tão de perto e povoado de alegria e paz; me orgulhei daquele mundo que eu ajudei a construir. Mesmo que hoje ele já não faça mais parte da minha alegria cotidiana.

Pensei então em Malone e na Torre, o melhor seria voltar e fazer-lhe companhia. Mas antes que eu pudesse juntar minhas emoções dilaceradas o mundo decidiu fazer chover. Como tantas vezes o fez naqueles tempos. Ah! Quanto medo eu tinha então da chuva. E então, ao som molhado daquelas gotas eu toquei-o, da mesma maneira que toco meu irmão: com olhar. E por um único e invisível segundo eu pensei ter sentido que o mundo me tivesse sussurrado seu segredo. E eu só queria que soubesse que eu o escutei. Talvez um pouco tarde, mas hoje eu compreendo e vivo mais tranqüila e não estou chorando. Me desculpe a demora, mundo. E isso tudo me faz pensar que o mundo, bem, continua o mesmo e quem cresceu fui eu.

Retornei a casa vestida de chuva do mundo e feliz, feliz por ter-lhe escutado a melodia e dançado sua ciranda. Malone viu-me despir e deitar-me na cama ainda molhada. Esquadrinhou cada parte de meu corpo como fazia Dalí com Gala. E a dizer pela textura de seu olhar cheio de mágoa ele compreendeu que seria eternamente impossível competir com o Mundo. Com meu outro mundo, aquele que Malone ainda se recusa a conhecer. E nada mais lhe resta senão observar a chuva. Essa filha do tal mundo desconhecido que um dia Malone decidira abandonar.

Eu me recolho ao sono e ao fechar os olhos a luz ofuscante daquele anel (que um dia fora meu) clareia a minha companheira e terna noite.

Hoje dormirei embalada pelo som daquela antiga melodia que eu escrevi para o mundo, mas que ele já não escuta mais. E eu apenas desejo que ele siga equilibrando-se sobre suas pernas longas, o mundo, que mal sabe o quanto estou em paz. E que lhe sorrio cada vez que me sorri.

Boa noite. Meu mundo me espera.

Novembro / 2009



Em homenagem aos tempos de paz!

terça-feira, 31 de agosto de 2010

um copo d'água na janela
expiro sussurros de fumaça
o vento vai e vem
e meu corpo....

(aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa)

...adormecido em silêncios teus

Porque eu também sei que já choveu
muito cedo o amor que deveria
me morrer mais tarde

Espero que ainda me escutes.




A Anna, mais uma vez, o meu muito obrigada.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Depois que o sol sumiu na esquina naquele início tarde
Reuni o que melhor havia da minha força
E chorei flores de perfume teu
As lágrimas adubaram um jardim que foi crescendo
E purificando a fumaça no teto
O meu cabelo cortei e...


...não pude impedir
Hoje sou terra quente que desliza
Continuamente ao redor
Da tua esparsa presença




Gracias, Adélia.
Inspiração do dia.

sobre esta tua vi(n)da

foi quando respirei que
o inverno era apenas
o choro que antecipa
o sorriso da
primavera,
que comecei a te amar


A Mial.

sábado, 26 de junho de 2010

historinha de tarde

o vestido verde-lua da mocinha, tão jovenzinha, se elevava com o vento e por baixo daquele tecido via-se perfeita e rígida a tristeza por acenar um adeus tão longo ao amado...

e o amado ia com a vida nas costas a buscar nuvens perdidas por aí. Mas pelo menos teve tempo de esconder a cabeça quando a primeira lágrima banhou seus cílios compridos.

ele nunca mais voltaria.

ela nunca mais o amaria como naquele dia.

Então, choveu leques de inverno.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

agora há pouco tive uma visão
eu caminhava contigo
pelas areias de algum lugar perdido
e eu tocava tua coluna no ponto de tua dor
e o sol cobria nossos corpos
unidos pela certeza de estarmos
eternamente sonhando

Com amor.
A ti.

terça-feira, 8 de junho de 2010

parece que foi ontem


Sim, nós celebrávamos! Celebrávamos como há muitos alvos amanheceres... E dentro daquele meu coração eu guardava infinitos grãos de areia roubados de uma praia que mais me parecia o chão de uma imensa catedral de adeuses.


Foi quando diante de mim pousou ( como dois soturnos gatos perdidos e confundidos com a transparência da noite fria e condenada a durar muito menos do que para sempre) um par de olhos que me segredaram em mudos gritos que o tempo é como uma pequena bolinha de gude: na infância você briga por elas, na maturidade você apenas as aprecia e na velhice, quando finalmente pode gozar de brincá-las já não mais as consegue enxergar.


Lá no fundo de minha eterna solidão estava a surpresa. E ele me olhava e me repetia sons sobre o amor. E o amor nos beijou e abraçou até a voz da aurora calar a noite e nos levar ao fim dos tempos ao som de uma certa canção que já não nos lembrávamos mais de algum dia ter ouvido.
E aquele abandono repentino e com perfume de eterno deu ao último beijo um amargo gosto de tempo perdido.


-Parece que foi ontem – alguém disse


E adormeci em seu colo de despedida.

sábado, 29 de maio de 2010

cair da tarde, luzes apagadas, um cigarro, um silêncio e mais nada
não é preciso mais para ser feliz
mesmo quando o passado grita tentando destrancar a porta e se desfaz logo em seguida.

e também não podem faltar rosas, sempre, rosas...

domingo, 23 de maio de 2010

O Artista

Uma noite nasceu-lhe na alma o desejo de esculpir a estátua do Prazer que dura um instante e saiu pelo mundo em busca do bronze, porque só podia imaginar a sua obra em bronze.

Mas todo o bronze do mundo tinha desaparecido e em nenhuma parte da terra podia encontrar-se bronze algum, exceto o da estátua da Dor que dura a vida inteira.

Ora, fora precisamente ele mesmo quem, com suas próprias mãos, havia modelado aquela estátua, colocando-a no túmulo do único ser que amou em sua vida. Ergueu, pois, no túmulo da criatura morta a quem tanto amara aquela estátua, que era criação sua, para que fosse um sinal do amor do homem que é imortal e um símbolo da dor humana que dura para sempre. E no mundo inteiro não havia outro bronze senão o bronze daquela estátua.

E tomou a estátua que havia modelado, colocou-a em umgrande forno e entregou-a ao fogo.
E com o bronze da estátua da Dor que dura a vida inteira, modelou uma estátua do Prazer que dura um instante.
O.Wilde

sábado, 15 de maio de 2010

Afinal, outras dores sempre vêm.

Ele subia uma ladeira íngreme. Seu corpo cansado não tinha mais o que fazer senão render-se ao frio.

Malone o observava de longe e tentou aproximar-se. Gostaria de poder dizer-lhe sua oração e exclamar-lhe ainda que fora uma única e solitária vez que o amava. Ao ver aquele homem diante de si, Malone concluía muito a contragosto, que tudo o que havia sido conquistado fora vivido à custa de mentiras.

O homem, porém avistara logo à frente a oportunidade de escolher entre continuar subindo, doava as forças que ainda lhe sobravam para o rigoroso e precipitado inverno daquele Maio camuflado por entre os meses vazios que o separavam de seu primeiro encontro com Malone.

A vida que ele poderia ter se parecia ao silêncio de uma meiga e humilde mulher que caminha com os olhos baixos no meio de uma rua deserta (seu andar traduz a delicada maneira que convive com a constatação avassaladora de que cada passo seu consiste em uma escolha que é deixada para trás e que ela não tem absolutamente nenhuma forma de impedir isso) e traz consigo a melancolia da noite e o brilho da Lua refletido em seu cabelo comprido, moreno e solto por onde as mãos calejadas daquele homem poderiam pousar e ali permanecer, permitindo-se enfim recuperar a esperança perdida naquela mata verde, vista desde a janela antiga que eram os olhos dele.

Malone o seguia na expectativa de que ele a tocasse, a nova vida. Sussurrava palavras de amor, eu as podia ouvi-las de longe.

- Ande, corra e se liberte antes que ela murche. E eu a plantei para você, só para vocês. Não é mesmo, soeur? Ajude-me a impedi-lo de ir.

Talvez tenha sido a oração mais bela de Malone. E o pranto, tímido, escapava-lhe dos olhos. Como a garoa que caía sobre as cabeças daquele homem e daquela mulher que intimamente já se conheciam, mas que permaneciam muito longe um do outro. Ah! Quanto Malone desejava que fosse verdade.

Reparou então que o homem se encontrava a um único passo de ver o rosto da meiga mulher parada de costas para ele, a pouco mais que uns metros de reencontrar a genuína paz que só sentiu quando esteve cara a cara com as ondas do mar que o assinalavam como igual, enfim, a uma única sílaba que faltava para escutar a declaração de Malone.

E eu podia sentir a vibração dos três corpos em uníssono implorando pela salvação, na expectativa do milagre: um carro passou, um alarme soou, o semáforo sinalizou vermelho, um cão latiu e o homem, eterno viajante, contemplou-a com seu cabelo elevado pelo vento gélido e aquela vista era bela e distante. Com uma frágil determinação dobrou a esquina e foi-se embora pelo caminho mais fácil. No mesmo instante aquela vida, tão bela, triste, mas muito bela entornou seu olhar para o que já esperava encontrar e viu a rua vazia e a ladeira decadente povoada apenas por um Malone de joelhos extasiado pelo peso da leveza absoluta com que aquele homem havia decidido seu destino, consciente de que talvez não houvesse uma próxima vez. Quisera Malone também ter seguido um caminho menos árduo.

Pouco a pouco então, a mulher silenciosa e meiga iniciou sua descida, pois já não havia mais medo, uma vez que a escolha havia sido tomada. E seu andar ardia e queimava como o último adeus a quem se ama a beira duma ladeira íngreme.

Malone encontraria a vida novamente?





A Kandinsky, que tem me ajudado a colorir a vida.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

viagem longa essa tua

é noite
te vejo parado
teu corpo cansado
calafrio, lágrima
sorriso sincero

tu não me ves
a tua camiseta vermelha
a cabeça baixa, a fumaça embaça teus verdes
olhos, que se espalham na minha pele

e cada vez mais longe
e tão perto

eu vou descendo a rua
deixando para trás o sorriso
e me contaminando de ti
madrugando a minha alma
que já não se levanta mais
da cama que é
a lembrança tua

domingo, 18 de abril de 2010

a melhor história duma noite cheia de histórias




As nozes amanhecidas dominaram o hálito inocente e indefeso daquela tarde da paixão e ele não haveria de encontrar meios para impedi-la de ir embora.



No caminho de volta, conduziu-a até a porta de casa. Deu-lhe a mão. Não poderia chorar afinal ela ia mais uma vez para longe de seus olhos. Ele a pintava com o mesmo tom de verde de Van Gogh: à espera que ela lhe desse um sinal de que aquilo recém começado já houvesse chegado ao fim.


Porém, o cheiro do malte que exalava de sua pele e lábios, bem como sua voz escura (que tentava envelhecer aqueles olhos de menino assustado) a estavam agradando cada vez mais.

Mas ele não se deu conta disso naquele dia em que consumiram o amor (o teriam sido consumidos por ele?) sobre os lençóis claros e confidentes que guardavam o segredo daquela solidão compartilhada e oculta do resto do mundo.

Ela teria passado o resto do tempo ali. Mas ele começara a temê-la e entendeu que após o café amargo que ela o havia ensinado a gostar lhe daria um beijo de despedida e talvez não voltassem a se ver nunca mais.


Ele a olhou com seus olhos a ponto de fugir dos dela. Ela o observava sem medo.


Silêncio.


Ela tocou-lhe o indicador que pendia inquieto no câmbio sem tirar os olhos dele:



- Esse sou eu, muito prazer – ele disse



-Eu só queria que você sorrisse...



E num daqueles momentos que Malone gosta de chamar de suspensos no ar seu olhar escapou do dela e se escondeu no mais opaco lugar de sua mágoa interior.


Ele sorriu



De certa forma já se amavam





Uma homenagem a você, minha linda, que me contou essa história de amor e que me permitiu transcrevê-la aqui.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Dos sonhos mais velhos

- E você? O que conseguiu entender nesses 8 anos? - perguntou
- Olha – disse ele com aqueles olhos que não haviam mudado NADA- durante esses 8 anos, não sei. Mas hoje, quero dizer, agora, eu entendo tudo o que não aconteceu nesse tempo.
E rindo ele acendeu o primeiro cigarro da noite.

A princípio foi difícil. Aqueles olhos que não haviam mudado nada estavam novamente diante dela. Com o passar das horas se encontraram nos lugares mais improváveis de suas semelhanças. Ele era um homem. Ela uma mulher e sobre a estreita mesa que os separavam em anos de distância estava um mapa de desilusões...

Ainda que suas dores o tivessem ensinado a baixar o tom de sua voz, ele seguia falando alto e tentando gritar para a Vida que ele era mais forte que ela. Uma vez ele sonhou o mundo.
Uma vez ela acreditou em cada palavra dele. Hoje ela só pode dizer que o amou. Porque finalmente o entendeu.

- Eu acho que sigo sonhando meus sonhos mais velhos!
- Um brinde a isso...

E compartilharam a risada estrondosa e sincera selando um momento eterno, assim como o amor deles.

Dedico aos ares (misteriosamente mais frios que o normal) desse segundo Abril solitário que sopraram de volta um amor pra toda a vida. E a ele que, mesmo que eu tentasse, não poderia descrevê-lo, tamanha alegria que sinto de tê-lo novamente por perto.

sábado, 27 de março de 2010

Lá fora tudo noite, tudo são minutos de alegria e aqui dentro estamos apenas o que sobramos de nós e de nossos sonhos mais velhos.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Estudos

"(...) Um sonhador, se é necessária uma definição detalhada, não é um homem, mas sabe, uma criatura de gênero neutro. Na maioria das vezes ele habita um recanto inacessível como se quisesse enconder-se até da luz do dia, e uma vez que se recolhe à sua casa, gruda-se em seu canto como um caracol; ou pelo menos nesse aspecto se parece com aquele animal interessante, que é animal e casa ao mesmo tempo e que se chama tartaruga(...)"



E certo momento você para e surpreende-se na madrugada e que está ainda acordada por outros motivos que levam a lugares novos. E que a solidão nada mais é que a sombra da sua silhueta na parede, que você admira como se fosse sua melhor e mais velha amiga. E você não está triste por isso. Percebe que a saudade peregrina com você para qualquer lugar que vá. A vida pinga nas gotas finas da garoa suave como as lágrimas escassas que tens derramado nos últimos tempos. São as dores da vida que se moldam entre agulhas e facas em meu corpo num espaço de tempo que só cabe a mim, e a Malone, ocupar.

E nem o mar, nem o céu, nem mesmo as velhas lembranças valem mais do que o precioso dia de hoje. A luz daquele tempo que fundia meus olhos nos do menino, tão jovens quanto a última porta do sonho de Malone, justo aquela que ele jamais poderia abrir sem um grau de dificuldade, consumiu-se enfim.


Eu vejo Malone com o mesmo traje cobrindo seu corpo. Há algo em seu olhar que está brilhando. Ele observa os homens e os vê desinteressantes. Em pé, ele acompanha os dias e me questiona quanto é necessário para se viver. Disse-me que sua memória o limitava a ponto de ele não conseguir compreender o significado de sentidos básicos como a fome, a sede, o frio ou o calor. Em todo seu mistério falava ao mundo como se realmente vivesse dentro dele.

O estado em que se encontrava era de dúvida. Sabia que talvez aqueles acontecimentos apenas o houvessem fortalecido e que não haviam sido o fim de tudo. Mas ele ainda ressentia o passado e receava o futuro, o único futuro que poderia amar e que temia já amar muito mais do que ele saberia suportar. Saber que cada vez mais ele já estava vivo o despertava para sensações que ainda não se sentia pronto.


Era difícil sair dali de dentro. As cores da rua não lhe chamavam atenção. Suas dores o matavam e se ele pudesse diria ao mundo que o céu não era azul para ele. Ao longe via homens e mulheres caminhando sem parar em busca de motivos vazios. Cada vida era para ele um novo enigma... Tinha vontade de poder tocá-los e dizer-lhes que despertassem para uma realidade melhor. Nos últimos tempos o rosto firme e envelhecido que aparecia em sua memória (porque assim o queria) era o primeiro em anos que lhe realmente abalava. E os olhos do homem eram muito verdes, fortes como janelas fechadas que dão vista para uma imensa mata. Essa era a vontade que Malone padecia: embrenhar-se na mata dos homens, cada um era como uma planta rara.
Após esse discurso breve, seu corpo tremia, voltou-se então para seu jardim. Aquela pequena mata que lhe dava paz.


Sorriu para mim. Estamos juntos para sempre, soeur. Você e eu, uma só solidão.



Malone sabe que eu também não posso viver sem amor.
A você, Mulher.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ele, que veio pra ficar e ir embora sempre. E para sempre.


E mesmo depois de muitos anos eu me lembraria daquela noite de tormenta em que, pela primeira vez, o convidei para jantar e que ele viu-se obrigado a espremer as laranjas. Era o que eu podia fazer se não morreríamos de sede. Ele demorou-se em observar a casa pequena e cheia de pó e eu pude captar o encantador sorriso de cumplicidade que soltou ao verme em trajes que não eram exatamente atraentes. Sentou seu corpo cansado e com aquele humor só seu desatou a contar-me como havia sido as últimas horas desde que nos havíamos separado. E eu, apenas ouvia, como há muitos anos, muitos e muitos instantes que precederam àquele que faziam com que me mantivesse distante de tudo o que escutava. Mas naquele momento e se eu tivesse podido perceber ou aspirar ao sinal de que tudo, realmente tudo estava mudando e que a voz daquele homem que vinha jantar em minha casa pela primeira vez haveria de ser o som, o grito que me acompanharia eternamente até hoje, muitos e muitos anos depois. Porém e acima de tudo minha maior surpresa (ainda que por dentro eu suspeitasse ) foi que aquela voz de viajante atraiu mais alguém além de mim. Aquela voz levou meu Malone a sair do quarto e postar-se justo atrás do viajante, com seus olhos de noite chuvosos, e ali se quedou toda a noite, praticamente sem piscar. Eu nem precisei tirar a atenção da comida que preparava para saber que estava ali. O tal homem contou-nos sobre suas viagens. Mas não precisava falar, eu as podia ver desenhadas em seu corpo. E depois de muito tempo, eu finalmente havia encontrado alguém que eu gostaria que andasse comigo os 40 anos que sempre quis andar. E essa certeza me fez ser melhor.



Entretanto, ele já não deveria pensar em alguém da maneira que pensei nele e nem em tudo que eu já gostaria que acontecesse. Os olhos e a paz daquele homem, que não era grande, mas que já fizera e vivera tanto a mais do que eu, pediam por nada mais do que um bom jantar. Ele precisava descansar. Malone, uma vez, pontuou muito bem a semelhança da alma daquele homem com uma armação de uma janela muito antiga e já maltratada, mas que estivera sempre aberta, presenteando a quem soubesse como admirar, com uma vista espetacular de uma vegetação sempre verde e recém florida. Foi o primeiro homem que Malone amou. Porque aquele homem o podia ver. Aquele homem havia falado com ele. E ele sabia que eu, bem, depois de tantas lutas vãs eu possuía a tranqüilidade de olhar novamente nos olhos de alguém e sorrir.



Já noite alta o meu silêncio o encorajava. Trouxe-me música e diamantes. Guiou minha mão por todos os desenhos e caminhos que havia percorrido. Levou-me para muito longe, onde até a água ele é capaz de dominar e esgueirou a sua em direção ao meu peito. Minha alma estremeceu e desde então pareço doente cada vez que isso não acontece. Sua boca encontrou a minha e nossos corpos embalaram-se num céu adolescente em que apenas descobríamos o tal estranho e inaudível ruído do silêncio, abandonando-nos cada vez mais para dentro de nossa solidão. Pois aquele homem que já havia visto de tudo, certamente, compreendia melhor o amor que eu tinha dentro de mim.


E assim como veio, foi. Voltou para seu caminho, que como sempre em minha vida, não tinha nada a ver com o meu. Acenei e ele me sorriu com a promessa que eu jamais acreditaria de que um dia me levaria com ele.


Essa era uma história que eu não ia contar agora. Mas o cheiro do viajante pousou pela tarde vazia e eu pude avistá-lo, nem longe nem perto, mas eternamente caminhando.


Ah! E quanto a Malone, agora as tardes na janela têm mais uma razão de ser. Calo-me, ele inicia mais uma de suas silenciosas descobertas e vira-se com seus olhos de menino (raro de acontecer) para me perguntar algo.








Inteiramente dedicado ao viajante, o primeiro homem que esvoaçou de nossos pensamentos, meus e de Malone, todo um passado atormentado e que nos ajuda, mesmo de longe a manter o coração novamente em paz. Paz do amor. O texto foi escrito com mescla de tempos verbais, pois, a maior viagem é a do Tempo...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

.... e daquele rapaz que, por mais que eu não quisesse, ainda amava alguém que já nunca fui eu, peço que apenas não quebre as janelas nem os anéis que tanto me esmerei em entregar-lhe por mais que não percebesse e que apenas lembrasse que um dia deixei os brincos, os enfeites para que pudesse voltar e pegar. Para que pudesse fingir que aquelas rosas amarelas não seriam as únicas que eu receberia e que hoje o grande sorriso confunde-se com a paz cotidiana de saber que mais que a vida eu tenho a morte e mais que a morte eu tenho o que ninguém mais tem, a paz temporária de sorrir para o mundo.
Olhando aquela carta que encontrei ontem mas que não entreguei jamais, há tanto tempo atrás, me pergunto quanto tempo mais vazio estaremos aqui?
Vivendo e desvivendo essa vida em pé, essa vida de horas de cansaço, sem sobremesas e de intrínsecas vontades de saber o que virá depois?

E eu que já fui e voltei mais de uma vez só quero poder dizer que daquela água já pude descansar meus pés, como os de Violeta, traziam todos os sítios do mundo.

Seja lá quem for, já partiu. E foi-se exatamante como o inverno, sem deixar vestígios.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Do menino e da coruja


Era bem cedo para acontecer. Mas aconteceu. Foi numa noite. Havia uma sala, calor, dores pelo corpo inteiro. Ambos miravam a janela sem vista. Não era necessário olhar pra fora, tudo o que mais desejavam estava bem diante deles.


Aquele menino passou por ela quando era proibido. Mas o menino era tão bonito. Ele tinha olhos de uma tristonha inteligência. E ele lhe fazia rir. Seu nome era de guerreiro. E ela, sem querer, o transtornava.


A noite era quente os fazia despir a solidão do primeiro (ou último) beijo que selava o começo (ou o fim) de tudo. O som da risada do menino era rouco e desafinada era a antiga canção que ele fez pra que ela risse junto. Ali os dois unidos sabiam que letra e melodia eram desconexas. Então eles começaram a tocar e tocaram muitas e muitas estrelas ao longo daqueles segundos esquecidos e ignorados por todos.


Solitários dentro de um aquário muito grande de sensações eles se reconheceram como dois irmãos e nem mesmo de longe puderam perceber que bem acima da superfície, aquela noite tinha sim uma testemunha, silenciosa e crepuscular. A única que poderia adivinhar o derradeiro e incerto futuro.


Malone escutou toda a história e, calado, colocou-se diante de suas ferramentas a fim de plantar mais uma rosa. Eu o observo. E desconfio que de algum lugar aqueles olhos nos observam também.

presentes que a ausência também dá

Malone conta-me sobre sua estadia com o velho homem. Havia tanta luz como escuridão em seus olhos pretos. Havia um amor perdido por entre os anos da distância que, a cada quilometro, se intensificava mais e mais.

Ao redor de sua face, o velho homem mantinha a pura beleza dos primeiros tempos, mas saiba que era mais velho do que gostaria de ser. E tal constatação embaçava o brilho indeciso de seus olhos que em sorrateiros momentos delatavam que ele também tinha as suas dores. Seu andar era de espera. Como sempre conseguiu viver: à espera de algo lhe indicasse o caminho.

Ele tratava a moça como a rosa mais querida. Malone admirou o sutil toque, essa misteriosa diferença, esse aroma de leite, essa força que jamais poderia desvendar e que ele não sabia bem o que era. Mas aquele velho homem sabia mais do que o próprio jardineiro em assuntos de cuidar da moça. Algo que Malone não podia compreender, pelo menos ainda não.
Meticulosamente, Malone estudou tudo o que aqueles momentos poderiam dar-lhe.

Há muito que me falava do tal velho homem, contou-me que lhe havia ensinado pouco, mas o essencial. Que o tempo não envelhece. Perguntava-se se algum dia chegaria a ser ele. Havia embutida naquela alegria a vontade imensa de ter feito tudo diferente. Assim como Malone. Como quando decidiu recusar o amor dela, pois sabia ser finito.

É um grande homem, soeur. Tão lindo como um desenho feito a lápis e jamais retocado. E a dança não está nele como está na pequena mulher dos meus sonhos, mas nele há a vontade imensa de viver a vida. Por um fio. Ele não quer morrer.

Malone disse tudo isso e ao terminar em seu peito martelava um coração desacordado há muitos anos, mas que diante da visão daquele velho homem, acabou-se vencido. Poderia jurar que vi cair uma sombra de lágrima, não fosse meu irmão tornar a virar o rosto em direção contrária. Calou-se e manteve-se assim por toda a viagem de volta.
Ao velho-homem, que continua longe, mas eternamente dentro.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Um dia Comum

Hoje pela manhã,
mais uma manhã.
A manhã de um dia a mais,
A manhã de um dia comum.

Não acordei nem me levantei,
não preparei o café-da-manhã.
Não fui trabalhar.

A tarde de um dia comum,
tem céu azul,
nuvens brancas.

Há pessoas normais
com quem se conviver.

A vida corre
como num dia qualuqer.
Um dia comum.

A volta é comum.
o banho, o jantar
que nao preparei pra mim (pra você).

A noite com estrelas
e um sono igual
Sem sonhos.



13/01/2010

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Super - Homem

Eu ia por uma rua estreita num dia muito frio. Era o primeiro inverno longe de casa. As gotas da garoa fina caíam mais lentas e tudo era novo. Minha bolsa continha o necessário para mais um dia de discretas reviravoltas do cotidiano. Meus passos eram rápidos e duros, minha mão direita procurava sem cessar alguma melodia que não lembrasse o passado. Aquele guardado a sete chaves e enterrado no navio mais submerso nos mares da Letônia. É um nome de um lugar que não faço idéia de como seja e por isso não tenho a mínima vontade de conhecê-lo. É onde meu passado deve estar. Porém, justo naquele momento em que os pingos d’água caíam sobre a minha pele, molhando a roupa e meus cabelos compridos, não pude evitar acabar por descobrir que dentro da minha imaginação o mar da Letônia deveria ser azul e a areia verde. Em minha face coroava o momento com lágrimas salgadas. Embebida pelo som das águas que batiam nas pedras não me dei conta de que a rua já virava esquina.

De repente tudo se fez noite, o céu acinzentou-se e o lampejo do trovão anunciou que eu demoraria mais tempo para chegar a casa. Acabou a luz e a rua estava deserta. Meu coração disparou ao vê-lo. O mar báltico voltara a ocupar seu lugar hipotético em meu cérebro.
Era o maior homem que eu já havia visto em minha vida. Até hoje me pergunto o que ele fez comigo? O que ele me fez fazer com ele? Até onde aquele olhar me marcou? Eu corria da chuva quando o vi. Ali, diante de mim o tal Homem de Verdade.

Em seu rosto estavam curiosamente dispostas as marcas artificiais feitas pela decisão irrevogável do tempo. Em seus olhos via espelhos quebrados e assistia uma realidade que não era a minha. Notei que quanto mais o observava mais me afastava dele, assim como ele próprio daqueles monumentos construídos por suas próprias mãos. E por mais que eu sentisse frio, que as gotas congelassem meus pés que os Cafés daquela rua estivessem lotados de pessoas que fogem da natureza, uma vez que se consideram mais fracos que ela, aquele homem resistia quase como uma muralha e seu corpo era de concreto. Era irônico assumir para mim mesma que ele jamais poderia viver as vidas que ele próprio ajudava a preservar. E quanto mais o olhava mais vergonha desse meu mundo particular eu sentia. Era sua rotina conviver com a constante destruição daqueles solos, preenchia os vincos abertos pelas máquinas inventadas pelos mesmos cérebros que o exploravam.

Por isso fechei meus olhos para vê-lo melhor. Deveria ser quinze anos mais velho que eu. Por trás das frestas em sua pele eu via que seu espírito irradiava uma luz ofuscada pela quantidade de poeira que inspirava diariamente. Poeira feita pelas suas próprias mãos de forçado. Ele já se tornara parte da massa de cimento que preparava todos os dias para cobrir os vincos abertos pelas maquinas rudes e ruidosas que ensurdeciam a sua mente. Deve ser por isso que ele não se incomodou com o barulho do meu grito interno quando chegou mais próximo de mim, a fim de me cobrir com um saco plástico, para que eu não me molhasse. Era aterrorizantemente belo aquele rosto. Inteiramente rasgado. Talvez as únicas rachaduras que jamais poderia reformar. As de sua alma.

Conforme reformava os vincos abria feridas profundas em seus dedos. Olhei-as por um intervalo de tempo indefinido. E ele permanecia diante de mim, sem nenhum medo. Pois não havia porque temer. Suas mãos grosseiras, sujas, maltrapilhas aproximaram-se de minha face e, com toda a gentileza que ele poderia ter nunca, derramou seu olhar poluído sobre mim e como que pedindo, implorando que eu permitisse um único e desesperado toque. Havia mais amor ali desde as mãos daquele desconhecido do que em todas as outras solidões que pude compartilhar com alguém. Então ele abandonou-se na chuva e da mesma maneira com que se desprendeu do mármore, do pó, e tornou a submergir deixando não só em meu rosto como também em minha alma completa a certeza de que aquele homem nunca mais me veria de novo. Assim como o meu passado que, depois daquele dia, acabou por submergir por um longo tempo nos mares da Letônia. Seguramente os olhos daquele homem poderiam confundir-se com a cor das águas que nunca conheci. E, curiosamente, soube que nem eu nem ele jamais conheceríamos tal lugar. Nem voltaríamos a nos encontrar, mas que fazíamos parte da vida um do outro. Assim como a Letônia faz parte do mundo.
Hoje, muitos invernos se passaram longe de casa, muitos dias chuvosos como aquele me fizeram atrasar compromissos, mas cada vez que meus passos são guiados por aqueles lugarejos onde o vi (ou o inventei), encontro-o parado olhando mais uma vez para mim. Como que invencível ao tempo. E sua lembrança se desvanece cada vez que a porta do edifício que ajudou a construir se abre e alguém sai apressado sem, jamais, perceber que ele, o Super-Homem sempre estará ali na memória viva de minha retina.