quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ensaio da chuva

Permita-me dizer que estou diante de um espelho e tenho fios de cabelo queimados em minha cabeça pois ando fingindo o que sou.

Tenho o que preciso aqui em minha morada.
Do lado de fora só me interessam os murmúrios quase imperceptíveis da madrugada que, de alguma forma, me recordam tuas desafinadas canções.

Esse corpo que agora observo.
Meu corpo passeia entre o belo, o imperfeito e claro, o frágil.
Permita-me dizer também que estou nu, vestido apenas com as mentiras que vivo a me contar.

Decido me tocar.
Ao longe escuto pequenos sinais de raios.
Em algum lugar você estará acordado?

Começo pelo peito: há certa dificuldade ao respirar, como se algo me impedisse de inalar o aroma das flores.
Ou serei eu quem decidiu por não mais aproveitá-los?

Deslizo minhas mãos para o pescoço.
Dentro dele há palavras presas, gritos sufoca - dos que jamais dei ou darei.
Sinto um impulso violento de dilacerá-lo com as mãos e liberá-los enfim...
E se não fosse o ruído sobressalente da janela que, atrás de mim, escancara-se com o vento.

A primeira lágrima tímida do céu noturno pousa em minhas costas.
L a r g a s
Me parecem a velha pradaria gigante por onde alguma vez descansei meu coração.
Tinha cor de terra arada, algo que me remete a lugares que nunca visitei e tão pouco farei.
Há um peso inexplicável sobre meus ombros.

Reparo que os pelos em meus braços levantam-se quando passeio sobre eles meus dedos algo úmidos.
Tenho mãos perfeitas.

Noto que o espaço entre costelas mede dois centímetros, máximo. Estou cada vez mais certo de que essa noite vai chover. As luzes de fora refletem coloridas em meu espelho e a brisa morna invade o quarto, causando em mim um leve estremecimento. Prendo a respiração e assim posso enxergar bem meus músculos do abdome. Sou magro, bem dizias. Demoro-me certo tempo em realizar que é em meu ventre que estão abrigados meus principais órgãos e tudo aquilo que poderia beber e comer também estariam ali. E isso me faz pensar que estou vazio.

Um raio ilumina o quarto. Estou mirando minha imagem que, ( assim como eu suspeitava ) como num passe de mágica parece se metamorfosear do lado de dentro do espelho quando, pela primeira vez, toco meu sexo.

E lá está ela, sempre pálida. Sua face me chama pelo nome ainda que ao contemplá-la me torna surdo. Tem os cabelos negros na altura dos ombros e uns olhos de quem nunca descansa. Como de costume apenas posso tocá-la com o olhar. Então minha retina perambula por entre seus ombros um pouco inclinados para frente, depois seu peito que parece prender um coração que bate lentamente. Seus seios pedem minha ajuda e seu ventre me devolve a certeza de que há também pureza num corpo que ainda não se livrou do mundo. E segue encantador e cansado.

Torno a realidade com um movimento seu. Ela pousa as mãos ao redor do quadril. Conseguirá andar? Seu corpo não possui tantas curvas e plaina sereno, traduzindo uma língua só falada por ele. Estou imerso em minha viagem sem volta.

O ar da noite está cada vez mais quente, as nuvens resistem assim como eu: a água quer ultrapassá-las com tanta vontade quanto a minha de adentrar no espelho diante de mim. E no momento exato em que me dou conta de que jamais poderia decorar aquele mapa de ternura, decido pedir socorro e vou ao encontro de seu olhar.

Meus olhos estão subindo, subindo...
o que me espera, soeur?
Sua boca existe como existem as rosas e tu,
as únicas coisas nas quais posso crer.
Sei que ela existe.

É tarde, a chuva agora já não parece mais ensaiar, ela suicida-se desde o céu alto...

Meu olhar em resistência, corre numa velocidade antes jamais vista, há tanta coisa ainda para olhar. Aquele corpo é maior que o mundo.

Falta pouco, já é tarde, já é tarde me anuncia a pesada gota que sinto cair em minha nuca...

Suspendeu-se o ar

Pescoço, nariz, maçãs, cílios e



Diante de mim eu e um espelho. Uma lágrima.

Permita-me dizer que pela janela ainda percebo, no mesmo lugar, o ensaio da chuva.




A Ludwig von, por seu dia.
E ela, que resistiu até o último momento em encarar Malone de frente.
16/11 a 16/12/2010 às 20: 35