quinta-feira, 24 de setembro de 2009

São Jorge chegou lá


"O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida. "


Madrigal Melancólico,
M. Bandeira - 11 de junho de 1920





Tenho as unhas vermelhas da cor da rosa. Imperdoável pétala caída no chão que piso. Chego em casa e corro para abraçar Malone. É ISSO. Encontrei.

Pelo menos hoje eu sei que em algum lugar ele, o rapaz cor de Lua do andar belo, ele me entendeu. Realmente estava sangrando. Minha alma completa sangrava. E eu não conseguia estancar a ferida.

Mas o marquei como igual. E hoje não preciso mais verter lágrimas para que ele me perdoe. Pois sei que já me perdoou.

E hoje eu solto a voz.


E só Malone escuta.





A Manuel.


Confissões entre irmãos

Malone sabe que eu estou pensando em tudo isso. Ele não diz nada. Só olha pela janela, agora sem vista nenhuma. A fora a noite cai. Por aonde vou?

Quando se passa muito tempo dormindo, é natural que se queira retornar às cobertas. O inverno estava aí, ma soeur. E eu ainda não sou suficientemente forte para defender-te.

Andei pela casa hoje. Percebi os cantos de pó na sala. Algumas janelas estão rangendo. Parei para ouvir o som que elas produziam. Bravas resistentes ao vento que as seduz.

Sabem que nunca mais será nunca. Que o nunca mais ainda que o sempre. Ainda que o sempre chegue a ser nunca. Você o observa. O cantor de estrelas continua aí fora e eu, bem, eu sigo cuidando das rosas que lhe plantei.
Preciso que plante mais.

O tempo passa. A vida passa. Eu queria poder viver por nós dois. E você segue acreditando no que quis acreditar. Naquilo que você inventou. Eu acredito em ti, ma souer. Só tu podes nos salvar. A minha vida é esse apartamento. Eu o inventei e o decorei e aqui estou. Agora te conheço e também sei do mundo pelos sons dos seus lábios.

Soeur, não há resposta. Ou você inventa o caminho ou você pede perdão a si mesmo por continuar fingindo.
E se tudo isso fosse uma mentira. Você fala tanto de mentiras. “Vivemos da desgraça”

E tantas vezes depois eu me lembraria de tudo aquilo que nunca vivi. E a vontade imensa de ter feito tudo diferente esnoba em mim todo seu poder.
Escrito em 26/06/09

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A última Carta de Amor

Malone dizia que sentia muito a falta daquela paz de não amar. Ele sabia que suas mentiras todas, tanto as que havia contado quanto inventado serviram para preencher o enorme vazio que era sua vida.

Eu me perguntava, onde? Onde exatamente havia estado em todos aqueles anos? Eu via as roupas e o pó recheando sua casa, via suas fragilidades físicas e acima de tudo podia ver o tempo, como uma presença e mais que perdido. E via as flores crescendo.

Ah! Ele tinha seu jardim. Uma vez deixou a mais linda rosa que alguém plantou na Terra. Ele a descuidou. Ele não soube podá-la. Essa rosa morreu. E Malone morreu um pouco junto com ela.

A história que Malone me contou em uma manhã ensolarada de inverno foi sobre a perda. Sobre a imensa e imperdoável perda de tempo em sua vida. Eu deixei aquela flor morrer, soeur. Ao tocar sua pétala sem querer me distraiu e acabou por matá-la. Descobri naquele dia que era muito cedo para ser jardineiro. Contudo, ainda me lembro quando inventei seu perfume. Tinha o aroma do céu e a textura de um vento quente. Após falar isso se silenciou por um momento. Esses momentos de silencio ao lado de Malone eram toda a minha vida. Levantou-se e caminhou até uma gaveta.

Aquilo que mais admiro num ser humano, em especial nos homens (seja qual for o meu tipo de interesse neles) é o andar. Me agrada a cadência sólida que trocam de pernas e distribuem o peso sobre elas. Geralmente, os homens que possuem mais sensibilidade do que os outros, que conseguem captar as emoções não só de mulheres, têm um andar extremamente encantador. O encaixe perfeito da cintura e quadris os leva a caminhar com lentidão (quase câmera lenta). Talvez seja a leveza (ou o peso) de suas vidas que decidem transpor para seus pés. Costumam alçar a cabeça a um nível onde possam ver tudo sob sua própria ótica, o que os faz acreditar que presunçosamente o mundo é exatamente da maneira como vêem. E esse momento, juntamente com o sorriso que surge por entre seus lábios, é verdadeiramente sensual. Perco a fala e sou capaz de parar o que estou fazendo somente para apreciar esse cotidiano espetáculo. Há uma graça e certo toque de insegurança no andar de Malone que faz com que eu sinta a melodia muda que emana de seu corpo a cada passo seu. Desde que o conheci nunca mais pude deixar de comparar sua maneira de caminhar com a dos outros homens.

Dentro da gaveta pegou um papel. Me entregou. Nele havia um texto que me pediu que lesse em voz alta para ele. Intitulada A última Carta de Amor. Citarei algumas passagens que me deixaram comovida.

“Eu diria a ti todas as palavras de amor, mas não posso. Eu dedicaria as razoes de meu riso excêntrico a tua alma, mas não posso.

Eu teria dentro de mim a certeza de ter-te em minha vida até meu último momento de lucidez, mas não tenho.

Porém, e acima de tudo, eu te dou a minha vida, caso venhas a necessitá-la. E para isso eu só preciso que me perdoes, pois ainda que não gostes de me ver em prantos dedico também a ti parte de minhas lágrimas.”

Não deixou que eu comentasse nada. Apenas pediu para eternizar aquele momento como um dos momentos mais plenos de sua vida.

E eu? O que seria de minha plenitude sem Malone?