quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

.... e daquele rapaz que, por mais que eu não quisesse, ainda amava alguém que já nunca fui eu, peço que apenas não quebre as janelas nem os anéis que tanto me esmerei em entregar-lhe por mais que não percebesse e que apenas lembrasse que um dia deixei os brincos, os enfeites para que pudesse voltar e pegar. Para que pudesse fingir que aquelas rosas amarelas não seriam as únicas que eu receberia e que hoje o grande sorriso confunde-se com a paz cotidiana de saber que mais que a vida eu tenho a morte e mais que a morte eu tenho o que ninguém mais tem, a paz temporária de sorrir para o mundo.
Olhando aquela carta que encontrei ontem mas que não entreguei jamais, há tanto tempo atrás, me pergunto quanto tempo mais vazio estaremos aqui?
Vivendo e desvivendo essa vida em pé, essa vida de horas de cansaço, sem sobremesas e de intrínsecas vontades de saber o que virá depois?

E eu que já fui e voltei mais de uma vez só quero poder dizer que daquela água já pude descansar meus pés, como os de Violeta, traziam todos os sítios do mundo.

Seja lá quem for, já partiu. E foi-se exatamante como o inverno, sem deixar vestígios.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Do menino e da coruja


Era bem cedo para acontecer. Mas aconteceu. Foi numa noite. Havia uma sala, calor, dores pelo corpo inteiro. Ambos miravam a janela sem vista. Não era necessário olhar pra fora, tudo o que mais desejavam estava bem diante deles.


Aquele menino passou por ela quando era proibido. Mas o menino era tão bonito. Ele tinha olhos de uma tristonha inteligência. E ele lhe fazia rir. Seu nome era de guerreiro. E ela, sem querer, o transtornava.


A noite era quente os fazia despir a solidão do primeiro (ou último) beijo que selava o começo (ou o fim) de tudo. O som da risada do menino era rouco e desafinada era a antiga canção que ele fez pra que ela risse junto. Ali os dois unidos sabiam que letra e melodia eram desconexas. Então eles começaram a tocar e tocaram muitas e muitas estrelas ao longo daqueles segundos esquecidos e ignorados por todos.


Solitários dentro de um aquário muito grande de sensações eles se reconheceram como dois irmãos e nem mesmo de longe puderam perceber que bem acima da superfície, aquela noite tinha sim uma testemunha, silenciosa e crepuscular. A única que poderia adivinhar o derradeiro e incerto futuro.


Malone escutou toda a história e, calado, colocou-se diante de suas ferramentas a fim de plantar mais uma rosa. Eu o observo. E desconfio que de algum lugar aqueles olhos nos observam também.

presentes que a ausência também dá

Malone conta-me sobre sua estadia com o velho homem. Havia tanta luz como escuridão em seus olhos pretos. Havia um amor perdido por entre os anos da distância que, a cada quilometro, se intensificava mais e mais.

Ao redor de sua face, o velho homem mantinha a pura beleza dos primeiros tempos, mas saiba que era mais velho do que gostaria de ser. E tal constatação embaçava o brilho indeciso de seus olhos que em sorrateiros momentos delatavam que ele também tinha as suas dores. Seu andar era de espera. Como sempre conseguiu viver: à espera de algo lhe indicasse o caminho.

Ele tratava a moça como a rosa mais querida. Malone admirou o sutil toque, essa misteriosa diferença, esse aroma de leite, essa força que jamais poderia desvendar e que ele não sabia bem o que era. Mas aquele velho homem sabia mais do que o próprio jardineiro em assuntos de cuidar da moça. Algo que Malone não podia compreender, pelo menos ainda não.
Meticulosamente, Malone estudou tudo o que aqueles momentos poderiam dar-lhe.

Há muito que me falava do tal velho homem, contou-me que lhe havia ensinado pouco, mas o essencial. Que o tempo não envelhece. Perguntava-se se algum dia chegaria a ser ele. Havia embutida naquela alegria a vontade imensa de ter feito tudo diferente. Assim como Malone. Como quando decidiu recusar o amor dela, pois sabia ser finito.

É um grande homem, soeur. Tão lindo como um desenho feito a lápis e jamais retocado. E a dança não está nele como está na pequena mulher dos meus sonhos, mas nele há a vontade imensa de viver a vida. Por um fio. Ele não quer morrer.

Malone disse tudo isso e ao terminar em seu peito martelava um coração desacordado há muitos anos, mas que diante da visão daquele velho homem, acabou-se vencido. Poderia jurar que vi cair uma sombra de lágrima, não fosse meu irmão tornar a virar o rosto em direção contrária. Calou-se e manteve-se assim por toda a viagem de volta.
Ao velho-homem, que continua longe, mas eternamente dentro.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Um dia Comum

Hoje pela manhã,
mais uma manhã.
A manhã de um dia a mais,
A manhã de um dia comum.

Não acordei nem me levantei,
não preparei o café-da-manhã.
Não fui trabalhar.

A tarde de um dia comum,
tem céu azul,
nuvens brancas.

Há pessoas normais
com quem se conviver.

A vida corre
como num dia qualuqer.
Um dia comum.

A volta é comum.
o banho, o jantar
que nao preparei pra mim (pra você).

A noite com estrelas
e um sono igual
Sem sonhos.



13/01/2010

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Super - Homem

Eu ia por uma rua estreita num dia muito frio. Era o primeiro inverno longe de casa. As gotas da garoa fina caíam mais lentas e tudo era novo. Minha bolsa continha o necessário para mais um dia de discretas reviravoltas do cotidiano. Meus passos eram rápidos e duros, minha mão direita procurava sem cessar alguma melodia que não lembrasse o passado. Aquele guardado a sete chaves e enterrado no navio mais submerso nos mares da Letônia. É um nome de um lugar que não faço idéia de como seja e por isso não tenho a mínima vontade de conhecê-lo. É onde meu passado deve estar. Porém, justo naquele momento em que os pingos d’água caíam sobre a minha pele, molhando a roupa e meus cabelos compridos, não pude evitar acabar por descobrir que dentro da minha imaginação o mar da Letônia deveria ser azul e a areia verde. Em minha face coroava o momento com lágrimas salgadas. Embebida pelo som das águas que batiam nas pedras não me dei conta de que a rua já virava esquina.

De repente tudo se fez noite, o céu acinzentou-se e o lampejo do trovão anunciou que eu demoraria mais tempo para chegar a casa. Acabou a luz e a rua estava deserta. Meu coração disparou ao vê-lo. O mar báltico voltara a ocupar seu lugar hipotético em meu cérebro.
Era o maior homem que eu já havia visto em minha vida. Até hoje me pergunto o que ele fez comigo? O que ele me fez fazer com ele? Até onde aquele olhar me marcou? Eu corria da chuva quando o vi. Ali, diante de mim o tal Homem de Verdade.

Em seu rosto estavam curiosamente dispostas as marcas artificiais feitas pela decisão irrevogável do tempo. Em seus olhos via espelhos quebrados e assistia uma realidade que não era a minha. Notei que quanto mais o observava mais me afastava dele, assim como ele próprio daqueles monumentos construídos por suas próprias mãos. E por mais que eu sentisse frio, que as gotas congelassem meus pés que os Cafés daquela rua estivessem lotados de pessoas que fogem da natureza, uma vez que se consideram mais fracos que ela, aquele homem resistia quase como uma muralha e seu corpo era de concreto. Era irônico assumir para mim mesma que ele jamais poderia viver as vidas que ele próprio ajudava a preservar. E quanto mais o olhava mais vergonha desse meu mundo particular eu sentia. Era sua rotina conviver com a constante destruição daqueles solos, preenchia os vincos abertos pelas máquinas inventadas pelos mesmos cérebros que o exploravam.

Por isso fechei meus olhos para vê-lo melhor. Deveria ser quinze anos mais velho que eu. Por trás das frestas em sua pele eu via que seu espírito irradiava uma luz ofuscada pela quantidade de poeira que inspirava diariamente. Poeira feita pelas suas próprias mãos de forçado. Ele já se tornara parte da massa de cimento que preparava todos os dias para cobrir os vincos abertos pelas maquinas rudes e ruidosas que ensurdeciam a sua mente. Deve ser por isso que ele não se incomodou com o barulho do meu grito interno quando chegou mais próximo de mim, a fim de me cobrir com um saco plástico, para que eu não me molhasse. Era aterrorizantemente belo aquele rosto. Inteiramente rasgado. Talvez as únicas rachaduras que jamais poderia reformar. As de sua alma.

Conforme reformava os vincos abria feridas profundas em seus dedos. Olhei-as por um intervalo de tempo indefinido. E ele permanecia diante de mim, sem nenhum medo. Pois não havia porque temer. Suas mãos grosseiras, sujas, maltrapilhas aproximaram-se de minha face e, com toda a gentileza que ele poderia ter nunca, derramou seu olhar poluído sobre mim e como que pedindo, implorando que eu permitisse um único e desesperado toque. Havia mais amor ali desde as mãos daquele desconhecido do que em todas as outras solidões que pude compartilhar com alguém. Então ele abandonou-se na chuva e da mesma maneira com que se desprendeu do mármore, do pó, e tornou a submergir deixando não só em meu rosto como também em minha alma completa a certeza de que aquele homem nunca mais me veria de novo. Assim como o meu passado que, depois daquele dia, acabou por submergir por um longo tempo nos mares da Letônia. Seguramente os olhos daquele homem poderiam confundir-se com a cor das águas que nunca conheci. E, curiosamente, soube que nem eu nem ele jamais conheceríamos tal lugar. Nem voltaríamos a nos encontrar, mas que fazíamos parte da vida um do outro. Assim como a Letônia faz parte do mundo.
Hoje, muitos invernos se passaram longe de casa, muitos dias chuvosos como aquele me fizeram atrasar compromissos, mas cada vez que meus passos são guiados por aqueles lugarejos onde o vi (ou o inventei), encontro-o parado olhando mais uma vez para mim. Como que invencível ao tempo. E sua lembrança se desvanece cada vez que a porta do edifício que ajudou a construir se abre e alguém sai apressado sem, jamais, perceber que ele, o Super-Homem sempre estará ali na memória viva de minha retina.