quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Penumbra


Antes de dormir eu observo o espaço em que me encontro. Estou nua diante de um espelho bem maior que eu. Ele me conhece há pouco tempo, mas já tem essa intimidade.Ao meu lado há uma luz. Pequena e difusa que ilumina o quarto com sua fonte fraca. Essa luz reflete em meu corpo e o examino calmamente. Sinto como se alguém mais me contemplasse nessa condição. Olho ao redor a procura de Malone, de seus olhos cor de chuva. Mas esse seria o único momento em que se negaria a vir visitar-me. Deve estar em algum lugar na Torre de Marfim. (Mas mesmo se viesse, creio que não me sentiria invadida). Pois de alguma maneira sei que ele está comigo, sempre. Desde criança não via essas luzes. Posso desde aqui brincar de sombras no teto. Tomo um copo d’água para acalmar. Acho que essa noite não sentirá insônia. Sinto de perto os olhos que me vêem de longe. Teriam eles reparado na sombra de minha silhueta no vidro da janela? Certamente estão mais a vontade do que eu.

A melodia vem diretamente da chuva. Estou só com ela. O Cantor está com Malone na Torre.

Seja lá quem forem esses olhos, já sinto saudades quando acordar amanhã.


Escrito em 07/10/2009 1:16 Am

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

E ele ainda lembra-se dela. Ele ainda a vê nua junto à sua cama. Observava com louvor seu jeito bailarino de movimentar-se. Nunca poderia ser de outra novamente. E, por mais que as mulheres que amou tenham sido como as frases escritas num diário secreto e tenham inspirado seu próprio conhecimento só ela, somente ela fora tão suave e intensa quanto à brisa na madrugada chuvosa.

E hoje ele pode vê-la, sentada no parapeito de uma janela velha deixando os pingos de chuva limpar e molharem seus pés belos, sujos e muito, muito cansados. Suas costas apoiadas na veneziana aberta, ela se move sem cuidado e as maltrata.
Ampla pradaria onde ele era o tocador do gado.

Quantas vezes lhe dissera pra tomar cuidado com as janelas! Mas ela não tinha medo, sentava-se sempre à beira de qualquer uma. Pois sabia que ele estaria sempre ali para salvá-la.

Mas, naquele tempo ela era Nua e estava presa. Sufocada por algo que ele nunca poderia compreender. Seu corpo era manejado por suas mãos como o baú cheio de ouro que Dantes encontrou após anos de injusto calabouço.

E ainda assim ela soube como portar-se diante dele. Assim o era e assim continua sendo.

Mas ele tem a incômoda certeza de que hoje, ela está nua e que outras mãos ousam abrir seu baú de tesouros levando-a cada vez mais pra longe dele. E ele também compartilha da dor desses outros desbravadores que, desvelados acordam no meio da noite e não são capazes de compreender por que ela já não está mais ao lado deles. Tocando a ausência precoce.

Ele a vê profanando o sagrado altar em que eles se casaram, num dia infinito em que ele a vestiu de noiva com sua pele branca. Há muito tempo atrás.

Mas o que ele não sabe é que ela é Livre.

Ela está sentada e por cima de sua cabeça há um céu estrelado. Ás vezes tenebroso.

Deveria ela deixar de pintar suas partes com cores fortes?

Tudo se modifica na cidade de Pedra em que hoje vive. Ela caminha pelas vitrines e seu rosto está por toda parte. As pessoas a olham em belas roupas e não vêem a grande rosa habitando sua caixa branca., sussurrando para dentro de sua alma a mais bela das orações.

Ela ama, mas está cansada de ficar em pé.

Ela tem saudade. Mas cansou-se de chorar, de fazer e de não poder ser.

Ela tenta. Faz, desfaz e descobre que a moça das pernas mutiladas caminha com dificuldade, mas mantém sempre um sorriso. Ela também tem o jardineiro que, assim como ela, está só.

Canta e ninguém a escuta.

É como se a Vida passasse por ela como um trem que não para em nenhuma estação.

E ela corre, corre e suas pernas doem. E continua a correr e a sua frente há uma estrada longa. E ela só deseja que os seus não a esqueçam e que ele (cir) ande não muito longe dela para que esse primeiro e louco amor nunca a deixe completamente.

Com anéis nas mãos ela caminha e recebe com muito prazer a visita daquela mulher de cabelos longos e negros.

No fundo, aqueles meninos que mal sabiam do mundo e apenas iniciavam sua jornada em busca de descobrir o amor sempre quiseram que o Cantor lhes dedicasse nem que fosse uma única canção.

A Malone. Por ter, com muita dificuldade, me confessado tal história.

sábado, 14 de novembro de 2009

Tarde no Parque

Malone está ao meu lado. Observa as pernas mutiladas da mulher sobre as rodas. Eu vejo seu olhar contornando a pele da mulher, forçosamente branca. O que ele mais queria era conseguir dizer-lhe, fazer-lhe crer que aqueles estigmas um dia a salvariam.

Hoje a vida está por nós, soeur.

De repente um homem corre e Malone, dum sobressalto, decide expor-se ao sol. Eu explico-lhe que o quente é algo entre a cor vermelha e o gosto de um bom café quente e puro.

Sobre o lençol estendido ele senta, abre os braços e se deixa embalar pela sensação cortante dos raios do grande astro abraçando sua pele, outrora presa. Como se livrasse de uma roupa muito velha sua pele se desprendeu de seus músculos dando lugar a outro tipo de revestimento, mais seco e firme. Aquela antiga e imutável companheira o abandonava de uma vez. Eu quis guardá-la em minha bolsa, mas Malone me impediu. Era chegado o momento de se expor.

Eu tomei coragem o toquei. Tocava pela primeira vez um filhote de animal selvagem com um misto de admiração e medo. Medo de ele ser intocável ou ainda pior, medo de que ele não exista. E que se confirme a suspeita de sua solidão eterna.

Então, descobri-o muito menos frágil do que sempre me parecera. Ao meu toque, estremeceu. E se não fosse pela costumeira e conhecida expressão de reprova eu poderia afirmar que ele havia planejado todo aquele momento apenas para sentir minhas mãos em suas costas.

Aquela pele brilhava. E tinha a nobreza de uma crina de cavalo de raça. Admirei-me que Malone fosse magro. Era a primeira vez que reparava que sua magreza existia e intimidava. Enganado-me uma vez mais, tamanha era sua força.

Ele se levantou e com sua mão me conduziu por um caminho cheio de árvores. E contou-me mais uma história, que, em breve descreverei.

Foi uma tarde deveras bela. Eu caminhava a seu lado e podia sentir as mudanças imperceptíveis do mundo, o segredo tão próximo do ser humano, aquele que somente ouvimos no instante anterior ao sono. Ele observava os casais abraçados, as mulheres conversando, o menino correndo. E eu, bem, eu sentia que não precisaria mais compreender nada. Que tudo havia cambiado, que o mundo havia girado e que eu estava por fio de descobrir a verdade sobre ele. Sobre o mundo e sobre Malone, claro. Se bem que, a essa altura de minha vida me é muito difícil diferenciar os dois.

Malone parou abruptamente como da primeira vez. O mesmo homem correu e o tempo sequer parou. Seu corpo começou a encharcar-se d’água. Não podia compreender de onde vinha. Aquele era o corpo e a pele de um homem muito forte. Ocorreu-me então a idéia de que aquele haveria de ser o homem que meu irmão era antes de decidir encarcerar – se na Torre de Marfim. Meus olhos buscavam desesperadoramente os seus e ele em seu momento de admiração pelo grande astro não evitou presentear-me com um único e intenso olhar. E eu vi.

Eu vi aqueles olhos tão díspares do belo corpo ensolarado. Eles permaneciam chuvosos e cinzas. (Como aquela tarde em que eu me despedi de você, pela última vez). Os olhos dele então começaram a chover por todo seu corpo e logo depois por todo o parque. Choviam em mim. E de repente Malone começou a rir e o som que saía de sua boca era como as trovoadas de uma incômoda chuva de verão.

Quis correr até ele, mas a mão em meu ombro me pressionava. Virei-me e encarei uma mulher velha, muito enrugada, com olhos muito claros e pele bem branca. Seus cabelos negros cobriam parte de um rosto que parecia ter perdido a alegria em algum momento de sua vida...como a pétala ressecada de uma flor.
A Tristeza de ver o corpo mais belo do mundo inundar-se em si mesmo me consumiu. Só tive tempo de fitá-lo pela última vez antes que aquela mulher me conduzisse até ela. Eu gritei.

No instante seguinte estava no mesmo lugar do início, mas dessa vez Malone não estava comigo. O parque, as árvores continuavam ali. Como se o tempo não os afetasse. Eu senti então os pingos grossos martelarem minha face e avistei não muito longe dali a mesma mulher do sonho assistindo-me, parada sob uma árvore. Em suas mãos suspendia um guarda-chuva que me oferecia.

Eu ignorei-a e juntando minhas coisas deixei-me levar por aquelas notas de chuva que, intimamente, me recordavam as lágrimas dele.

Caminhei sobre duas rodas em direção a casa.

Caminhei em direção a ele, a minha casa, a Malone.
A meu L.

domingo, 8 de novembro de 2009

a Rosa Jambo do paraíso II


Diante de mim está uma mulher
Uma mulher sozinha
Em cima de um palco
Ela representa ali seu papel
Não o representa para mim e nem para si mesma
Ela está parada no centro
Quem é ela?

Tem o olhar posto no vão escuro á sua frente. Como se pudesse ver além das luzes,
seus olhos balançam e esquadrinham cada detalhe e se perdem na multidão a procura de...

Como um animal à caça, quando aproxima seu nariz da presa para verificar sua consistência e qualidade. Ela analisa, ela pensa e age. Com o coração. Com a alma e com seu magnífico cérebro

Ela respira e a cada suspiro seu peito alvo infla e ela pode sentir bem de perto a verdade


A verdade de estar profundamente ali. E apenas ali. Numa mentira

Seu verdadeiro eu, sua identidade roubada por cada personagem que vive transforma-a numa semideusa

Pulsa uma veia em sua têmpora. O que a faz ser ainda mais bela e natural. Como a flor, a ave, a rosa


Jambo

E faz com que eu a ame cada vez mais, e profundamente


Você
teria coragem de inspirar seu perfume?

Uma criatura que vive de mentira a sua vida de verdade

Ela é Atriz


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Escrito em 25/10/2009 -

Dedico a Lígia