segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Av. Amor, 23

Era fim de tarde na Torre de Marfim, havia algum tempo que não encontrava Malone ele andava algo taciturno, depois do dia em que conheceu a Vida. Eu inspirava fumaça provinda daquela droga em minha mão quando abri a janela. Percebi que chegava porque o ar quente inundou meu coração, tranqüilo até então, e o fez disparar como milho de pipoca doce na panela. Senti certo incômodo no inicio, ele sempre fora mais forte do que eu. Seus olhos me davam as boas vindas novamente. Olhar para Malone sempre fora confortante, apesar de eu nunca conseguir desvendar-lhe. E naquele momento era muito mais fácil e menos dolorido olhar para sua cabeleira precocemente grisalha. E ele sabia o que eu estava pensando.

A Torre de Marfim naquele dia tinha 23 andares. Esse número não me diz nada. Mas eram exatamente 23 grandes motivos, momentos, ilusões que me separavam daquela vida de felizes dias. Malone sabia que eu não queria mais olhar para baixo. Pousou então sua mão (pois depois do abraço ele já poderia tocar-me) levemente ao redor de meu pescoço e gentilmente obrigou-me a olhar para aquela Avenida 23 vezes mais longe que o normal. E nesse momento rapidamente percebi que Malone manteve sua mão onde estava, aproximou-se mais e inalou o aroma de meu cabelo. Depois me diria que havia descoberto que existem coisas que podem ser tocadas...


Eu via as sombras lá embaixo. Aquelas pessoas que como eu um dia sonharam em estar na Torre de Marfim podendo observar de longe sua própria vida. Ah, se eu tivesse tido a chance de escutar de longe o ruído da guitarra do músico de rua, da buzina apressada de alguém que se esqueceu da brevidade da vida, da passeata que reivindicava mais mentiras. Mas com a pressão em minha cabeça causada pelo peso leve da mão de Malone me fazia pensar naqueles dias. 23 vezes milhões de passos por aquela avenida. Senti vontade de dizer a ele que eu sempre gostei de andar. Mas que naqueles tempos já sentia as futuras dores que minhas pernas viriam a sofrer... Ainda que eu tenha plena consciência de que eu as tenha agravado. E nesse momento Malone virou-se para observar a Avenida também.


Apontou para um ponto em que eu costumava parar para descansar. Disse que uma vez tinha me visto em sonho num lugar muito parecido. E que eu estava em paz. Com cabelos muito, muito compridos. Nesse momento passou a acariciar o topo de minha cabeça.


Conforme movimentava sua mão remexia em minha memória os momentos daquele amor fantasiado de avenida. Ou seria apenas uma Avenida apelidada amor? Palco da dança madrugada e envelhecida com o tempo e guardadas em algum canto qualquer. Num canto, qualquer.


Malone parou subitamente de acariciar minha cabeça. O mundo voltou ao normal. Como numa vertigem a Avenida se desvaneceu. Ele me impediu de derramar uma lágrima, escancarou a janela e foi noite adentro desbravar mais um cenário dentre os milhões de cenários agrupados em minha memória. Ver-lhe voar foi até então o momento mais solitário e sereno de minha vida. Como o vento que invadiu a sala assim que eu fechei a janela, deixando a velha Avenida a servir de guia para outros amores.


Malone voou e sorriu. E eu lhe sorri de volta, acalmando minha alma rasgada. E devolvi a lembrança a seu lugar, 23 andares abaixo.

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