sábado, 14 de novembro de 2009

Tarde no Parque

Malone está ao meu lado. Observa as pernas mutiladas da mulher sobre as rodas. Eu vejo seu olhar contornando a pele da mulher, forçosamente branca. O que ele mais queria era conseguir dizer-lhe, fazer-lhe crer que aqueles estigmas um dia a salvariam.

Hoje a vida está por nós, soeur.

De repente um homem corre e Malone, dum sobressalto, decide expor-se ao sol. Eu explico-lhe que o quente é algo entre a cor vermelha e o gosto de um bom café quente e puro.

Sobre o lençol estendido ele senta, abre os braços e se deixa embalar pela sensação cortante dos raios do grande astro abraçando sua pele, outrora presa. Como se livrasse de uma roupa muito velha sua pele se desprendeu de seus músculos dando lugar a outro tipo de revestimento, mais seco e firme. Aquela antiga e imutável companheira o abandonava de uma vez. Eu quis guardá-la em minha bolsa, mas Malone me impediu. Era chegado o momento de se expor.

Eu tomei coragem o toquei. Tocava pela primeira vez um filhote de animal selvagem com um misto de admiração e medo. Medo de ele ser intocável ou ainda pior, medo de que ele não exista. E que se confirme a suspeita de sua solidão eterna.

Então, descobri-o muito menos frágil do que sempre me parecera. Ao meu toque, estremeceu. E se não fosse pela costumeira e conhecida expressão de reprova eu poderia afirmar que ele havia planejado todo aquele momento apenas para sentir minhas mãos em suas costas.

Aquela pele brilhava. E tinha a nobreza de uma crina de cavalo de raça. Admirei-me que Malone fosse magro. Era a primeira vez que reparava que sua magreza existia e intimidava. Enganado-me uma vez mais, tamanha era sua força.

Ele se levantou e com sua mão me conduziu por um caminho cheio de árvores. E contou-me mais uma história, que, em breve descreverei.

Foi uma tarde deveras bela. Eu caminhava a seu lado e podia sentir as mudanças imperceptíveis do mundo, o segredo tão próximo do ser humano, aquele que somente ouvimos no instante anterior ao sono. Ele observava os casais abraçados, as mulheres conversando, o menino correndo. E eu, bem, eu sentia que não precisaria mais compreender nada. Que tudo havia cambiado, que o mundo havia girado e que eu estava por fio de descobrir a verdade sobre ele. Sobre o mundo e sobre Malone, claro. Se bem que, a essa altura de minha vida me é muito difícil diferenciar os dois.

Malone parou abruptamente como da primeira vez. O mesmo homem correu e o tempo sequer parou. Seu corpo começou a encharcar-se d’água. Não podia compreender de onde vinha. Aquele era o corpo e a pele de um homem muito forte. Ocorreu-me então a idéia de que aquele haveria de ser o homem que meu irmão era antes de decidir encarcerar – se na Torre de Marfim. Meus olhos buscavam desesperadoramente os seus e ele em seu momento de admiração pelo grande astro não evitou presentear-me com um único e intenso olhar. E eu vi.

Eu vi aqueles olhos tão díspares do belo corpo ensolarado. Eles permaneciam chuvosos e cinzas. (Como aquela tarde em que eu me despedi de você, pela última vez). Os olhos dele então começaram a chover por todo seu corpo e logo depois por todo o parque. Choviam em mim. E de repente Malone começou a rir e o som que saía de sua boca era como as trovoadas de uma incômoda chuva de verão.

Quis correr até ele, mas a mão em meu ombro me pressionava. Virei-me e encarei uma mulher velha, muito enrugada, com olhos muito claros e pele bem branca. Seus cabelos negros cobriam parte de um rosto que parecia ter perdido a alegria em algum momento de sua vida...como a pétala ressecada de uma flor.
A Tristeza de ver o corpo mais belo do mundo inundar-se em si mesmo me consumiu. Só tive tempo de fitá-lo pela última vez antes que aquela mulher me conduzisse até ela. Eu gritei.

No instante seguinte estava no mesmo lugar do início, mas dessa vez Malone não estava comigo. O parque, as árvores continuavam ali. Como se o tempo não os afetasse. Eu senti então os pingos grossos martelarem minha face e avistei não muito longe dali a mesma mulher do sonho assistindo-me, parada sob uma árvore. Em suas mãos suspendia um guarda-chuva que me oferecia.

Eu ignorei-a e juntando minhas coisas deixei-me levar por aquelas notas de chuva que, intimamente, me recordavam as lágrimas dele.

Caminhei sobre duas rodas em direção a casa.

Caminhei em direção a ele, a minha casa, a Malone.
A meu L.

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