domingo, 3 de maio de 2009

Mais sobre sono e sonhos.

Ao meu lado jazia um homem.
O homem.
Vivo.

Seus olhos fechados, certamente escuros, eram como a cripta que guardava um segredo escondido. Indecifrável.

Ausente, o movimento de seus pulmões refletidos no ar que saía de suas narinas o tornava frágil. Refém das mentiras que se contou uma vida inteira.

Cada gesto involuntário que seu corpo pronunciava tinha valor para mim. Meus olhos cravados nos seus diziam todas as sensações do mundo. Olhei-o livremente, e a cada olhar me libertava de sua imagem. Como um aceno de adeus. Um adeus no oceano. Libertava-me dele e me prendia a mim. Não pisquei. Meus olhos marejaram dentro do mar a areia poluiu minha pupila.

Eu estava novamente ali. E de novo. Seu corpo de areia era intranqüilo próximo ao meu, que se endurecia com o passar dos anos. Minha carne, dilacerada, aberta, exposta e meu espírito que não estava ali. Não podia estar ali. Eu não podia estar ali.

Seu corpo exalava um doce aroma de dor. Dor contida. Dor que gostava de doer. E entendi que era mais livre que ele. E sua cor era de solidão.

De repente, reprimi um grito. Um grito de socorro. Quis sair. Quis correr. Quis ir embora para sempre. E voltar no instante seguinte. Não me deixe aqui, não sei ir embora sozinho. Malone reclamou que queria observar mais...

Atravessei a barreira de sua pele arenosa, toquei seu coração. Ainda quente. Batia em tom solene. Peguei-o. Cortei-o ao meio. Era o momento de saltar pela janela. Branca. Não tive coragem. Malone me repeliu. Encarei-o, o velho ar de reprovação tomou conta de sua face.

Voltei-me para o homem. Uma forma ao redor de seus lábios “esboçava um meio sorriso”. Devolvi-lhe o coração e joguei o meu longe. Minhas mãos estavam cobertas. Limpei-as em meu corpo e deixei secar. Não tive medo que visse. Talvez nunca acordasse a tempo de ver, a tempo de entender o que se passava comigo. Só Malone viu. E Malone nunca diria nada.

Quando me dei conta de que respirava com dificuldade, o salvei. Nada acontecia só o silêncio se manifestava. O som da verdade muda que eu carreguei dentro de minha bolsa nos últimos anos. O movimento contínuo de seus pés irrequietos era simultâneo a minha respiração. Assim como Malone ele também não havia se acostumado a outro ser humano, muito menos a mim.

À convite da vida fiquei ali a vida inteira

E quando ela partiu, de súbito, reparei que ao meu lado ainda jazia um homem.
O mesmo homem.
O homem.
Vivo.

Ou Morto?
À Boal
(16/03/1931 - 02/05/2009).
Que para mim nunca apagará sua chama.
Obrigada por me dar a razão da minha vida.

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