quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A Mulher Perene


Desde a poltrona estagnada no centro do apartamento Malone observava a janela defronte, ruído d’água caindo do chuveiro.


Malone agarrava-se a tudo aquilo como um servo que adora seu amo apesar de escravizado e permanece ao seu lado imóvel como uma vegetação típica de lugares ermos, consumida pelo sol.Ele já não poderia ou já nem queria mais sair dali e se tornava cada dia mais só como a lágrima que, sob a luz de um dia nublado, escorre discreta e sozinha na face de um alguém que anseia por respostas a perguntas sequer formuladas.


Havia uma janela: ás vezes ele gostava dela. Era grande o suficiente para que Malone se recostasse em sua poltrona engastada. Através da janela ele avistava uma mulher: ela tinha seios fartos e os acarinhava enquanto se lavava. A água despedia-se de seu corpo como o arco se despede do violoncelo, metamorfoseando seus pensamentos em música que Malone podia escutar desde longe.


Quem poderia ser? E se em algum momento, Malone pudesse receber seu olhar? Daquela fêmea de pele morena... Malone reparou então que lavava um ferimento, uma cicatriz relembrada todos os dias. Imaginou que aquela fora uma fissura causada pelos arcos daquele violoncelo cortante que embalava o corpo dançante de uma mulher que não possuía muito mais vaidade a não ser a de contornar seus seios fartos. Inconscientemente ela também deveria ver Malone.
Ele levantou-se e atravessou a janela em direção a ela. Mais de perto observou lentamente que seu corpo era inteiramente humano. Malone viu, agonizante e fraca, bem ao centro de suas costas largas uma chama dourada...


A mulher conduziu a mão de Malone por entre suas curvas. Em determinados pontos ele podia notar uma expressão de dor e estranhamente ele também se sentia incomodado, como se aquelas máculas também o afetassem. As notas daquela sinfonia eram densas, marcadas, profundas e acima de tudo encantadoramente tristes... Mas a mulher sorria, calma e timidamente por receber Malone. Aroma de terra vermelha como a cor dos lábios pequenos e breves, os mesmos que no instante seguinte esconderam-se em seu ouvido e, na ponta dos pés ela segredou-lhe uma oração... Malone percebeu que ela fazia certo esforço para equilibrar-se: sorriu (como há muito) e deu-se conta de que poderia abraçá-la desde qualquer altura...


Ele a amparou, a mulher morena, de seios fartos bela e dourada e deixou-se cair em seus braços como as pétalas que abraçam o pólen para sobreviver...


Com a face descansada sobre seu peito, Malone recostou o ouvido na cicatriz entre os seios. Ali, de súbito, ouviu a melodia abstrata: teve esperança, teve verdes lembranças...A mulher apertou-o contra seus seios e pela primeira vez em muitos anos perdidos (sim, ainda perdidos) Malone sentiu-se em casa e cara a cara com aquela mulher de seios maculados ele buscou seu olhar. Ela lhe retribuiu e dentro de seus olhos havia veleiros grandes que levavam Malone para todos os cantos do mundo.


A mulher então ergueu Malone e antes que ele pudesse sequer tocar-lhe os seios ela pediu-lhe que lhe ajudasse a cuidar de sua cicatriz. Malone encostou seu indicador na marca profunda, abriu-se então uma pequena passagem de onde vazava uma luz dourada e os violoncelos atingiram o máximo de volume. A música parecia curar a mulher...O ambiente então iluminou-se, Malone depositou um pouco mais a mão, pode sentir o calor interno daquele corpo. Sentiu algo como um abandono compartilhado ao observar a face plena da mulher.


E num passo, olhou-o diretamente, a mulher adentrou Malone como ninguém jamais o havia feito.


Suspendeu-se o tempo, o som do violoncelo ecoava mudo, a luz dourada cegou-o e ele só teve tempo de decorar aqueles seios fartos uma última vez antes de acordar.


Desde a poltrona estagnada no centro do apartamento Malone observava a janela defronte, ruído d’água caindo do chuveiro. Mas ela já não estava mais lá. Seu corpo estava pleno, sensações que ele já não se lembrava mais, foi quando percebeu que, em sua mão ( a mesma que invadiu o peito da mulher ) restava com pétalas fortes e vermelhas, a misteriosa prova de que um dia ainda se reencontrariam:


Malone e a Mulher Perene.




A Marçal ( de Lavínia e Cauby) , Bruce e sobretudo Villa-Lobos, companheiros de tarde.

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