sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Quarto 33 (O sequëstro da Rosa)


A Torre de Marfim é bela de observar-se Tem uma visão privilegiada do céu e das luzes do bairro. Como de costume Malone está sentao sobre o parapeito, divide sua atenção entre mim e a grande árvore recém-florida. Seu olhar brinda a chegada tímida e cinza da Primavera.

Eu tenho sono mas ainda posso ouvir o canto dos passarinhos ao longe. Malone ri para mim. Leva em sua face um tom mais leve. Tenho uma nova flor, soeur. Deiz-me isso com a estranha e incômoda calma de sempre. Com a tranquilidade do homem que fez tudo o que podia e gostaria de ter feito na vida e aguarda a morte com fenomenal aceitação. Ou ainda com a mesma calma com que o Sol nasce toda manhã, pontilhando de luz o céu escuro e nos trazendo a paz, a paz de saber que a angustiante madrugada insone já vai passar.

Me aproximo de meu irmão, ele está vestido com o mesmo casaco cinza de sempre e leva as mãos nos bolsos. Seu cabelo cai por entre as sobrancelhas e seus olhos cor de noite chuvosa encontram os meus e se preparam para mais uma história.

O que havia lá?
Apenas um quarto com uma janela. Por cima dos lençóis estava, amarrada com uma fita prateada, uma rosa nova. Malone nunca a havia visto antes, nem em seus sonhos.
Sua cor era a mais intrigante e misteriosa. Me deteve no primeiro instante.
A rosa respirava profundamente, como o mar após a Ressaca. Suas pétalas, eram macias e enrugadas. Se parecia com a pele de um homem comum que não se preocupa com a ação do tempo, mas que ainda consegue manter a beleza natural do ser.

Ele se mantinha distante daquela frágil figura. A rosa encontrava-se entre dois corpos. Nus. Que, extasiados, deixavam-se descansar do amor e o toque dos raios de sol os fazia belos e perfeitos , muito mais do que jamais foram. E só a rosa podia ver Malone. E ainda que eu pudesse ter certeza de que Malone, neste instante caminhou até os corpos e inalou a atmosfera secreta que os rondava. Mas ele me afirmou que não e desviou o olhar para a eterna madrugada.

A rosa, então, pediu-lhe que a levasse com ele. Ela era o segredo mudo entre aqueles dois corpos entregues ao talentoso Cantor de Estrelas. Seria muito difícil colher aquela rosa, tão naturalmente bela e frágil. Estava bem no centro daquele fresco desejo, justo acima das pernas desesperadoramente entrelaçadas. Malone deu-se conta de que o homem descansava a mão sobre a cintura marcada da mulher, como se fosse um escultor que passa a vida inteira buscando pela simetria da curva perfeita e finalmente a encontra na simplicidade de uma andarilha sem vaidade. E a mulher estava tão próxima do cabelo do homem, que Malone percebeu que caía escondida uma centelha de lágrima. Como se, enfim, depois de tanto tempo, anos perdidos, tivesse encontrado novamente a paz, bem ali, nos cabelos bastos daquele homem que mais parecia um ator.

Malone assistiu a cena durante muitos minutos. Perguntou-se há quanto tempo aqueles corpos aguentariam ficar ali? E se ele arrancasse a rosa nascida do estremecimento do suor do prazer compartilhado por seus criadores. Por quanto tempo mais eles poderiam sobreviver?

Já era tarde demais. A rosa suplicava-lhe o sequestro. Reclamava que só ele poderia fazê-la sobreviver, pois aqueles corpos nus acabavam de criá-la e apesar do tom de eternidade presente no ar, eles eram apenas corpos com falhas humanas. E que só Malone poderia compreendê-la, decifrá-la e preservá-la. Malone estreitou os olhos diante dos meus e me contou que a rosa disse-lhe, como em tom de mistério, que pouco antes de adormecer a mulher sussurrou-lhe que não se preocupasse porque um certo jardineiro viria resgatá-la.

Malone respirou fundo e como que compreendendo tudo, caminhou até o pé da cama, pelo lado do homem e sentiu uma vontade nova e invisível de estar em seu lugar, bem ao lado daquela mulher esculpida na humildade de seu destino. Olhou para ele e o viu belo e menino, mas não teve certeza se era realmente belo ou se era aquela mulher que o fazia grandioso. Aproximou o braço, que passou rente ao corpo do homem. Sua atenção agora inteiramente voltada para a rosa e mesmo que se esforçasse nao pode deixar de notar que o aroma que exalava do corpo daquela mulher tão linda se fundia com o aroma da rosa, como se fossem a mesma pessoa. A mesma criação. E quando estava a ponto de cometer o crime, o seqüestro da rosa Malone sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Tocou a rosa e desviou o olhar e nesse momento pode jurar que viu aquela mulher testemunhar seu feito. Seus olhos se encontraram e num daqueles instantes suspensos no ar e Malone acordou.


Acabo de sonhar contigo, Soeur. Eu o observei, suava e se nao fosse por eu ter acompanhado seu sono eu poderia dizer que Malone havia passado a noite com uma bela mulher. Ele não negou, mas riu-se dessa possibilidade. E no mesmo tom mostrou-me, escondida, em sua mão a única e solitária pétala que me sorria.


Como se me conhecesse há muito tempo.






A Henri, pela bela tarde.

Ao Ator.

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